Ecoh

“A imaginação é a própria existência humana e o contador de histórias traz recortes, dádivas, presentes da existência humana. O ouvinte, o receptor, se espelha, cria ecos dentro de si e fica ampliado no momento que recebe uma história nova.” Gloria Kirinus

Entrevista por Christina Mattos | Foto enviada pela artista

O Sapato Falador foi o primeiro livro de Gloria Kirinus. Publicado nos anos 80, é uma narrativa poética sobre solidariedade depois de uma enchente que causa muita destruição.

‘Era uma vez uma chuva de tantas chuvas formada que, somando chuva a chuva, deu uma grande chuvarada…”, começa.

Hoje já são 37 obras publicadas com histórias para crianças e adolescentes e também títulos teóricos para educadores. 

A escritora, pesquisadora, narradora e professora é uma das convidadas para conduzir atividades formativas online no11º Encontro de Contadores de Histórias de Londrina. 

A palestra A Pátria Ampliada nas Narrativas Milenares e na Percepção Infantil, sobre o poder das histórias no estímulo ao imaginário em pessoas de qualquer idade, será no dia 22 de agosto, às 19h30.

Já o minicurso Os Infinitos de Gaston Bachelard no imaginário do Contador de Históriasestá marcado para osdias 30 e 31 de agosto e 1 e 2 de setembro, sempre das 19h30 às 21h30.

Textos do filósofo e poeta francês vão guiar os encontros que terão como foco o estímulo do imaginário por meio do contar/escutar histórias.

Conversamos com Gloria Kirinus sobre a sua dedicação à palavra, o papel do contador de histórias e as atividades no ECOH.

– O que foi determinante para que você se tornasse uma autora, uma narradora, uma profissional da palavra? 

Gloria Kirinus – Uma das coisas que me fez escritora, foi ouvir histórias. Minha mãe e meu pai eram professores. A gente começava por ouvir histórias já no café da manhã. Cada um contava seu sonho. Eu não sei explicar, não lembro se naquela época o tempo tinha mais tempo. Sei que na hora do café da manhã, que a gente deveria sair apressado como hoje em dia, para a aula, para o trabalho, dava tempo de cada um contar seu sonho. Minha mãe perguntava. Glorita, que sonhaste à noite? Carlito, e tu? E a gente contava.

Da mesma maneira, a poesia estava muito presente. Acho que eu falo algo disso no meu livro teórico, Criança e Poesia na Pedagogia Freinet

Os nossos almoços, os nossos jantares eram permeados de leituras de poesia. Era muito legal, muito engraçado, porque cada um brigava por defender seu poeta. Meu pai, minha mãe, o tio e o avô também. Então era uma festa da palavra e seria difícil fugir desse universo.

A criança num ambiente de eleitores será eleitora. Se ela vê que o pai e a mãe nunca pegam num livro num não, não chegam a ver o rosto de alegria, de surpresa, de encantamento quando alguém está lendo um livro.

– Você já apresentava algum sintoma de poesia quando criança?

Gloria Kirinus – Que legal que você mencionar Synthomas de Poesia, esse meu livro teórico me deu muita alegria. E ainda está sendo bem aceito e circulando pelos nas mãos dos pais dos professores.

Eu tinha sintoma de poesia. Até trato dele num capítulo do livro: o isolamento fabuloso de estar sozinho, para fabular, ter um momento de fantasia, de devaneio, um momento criativo. Eu tinha meu canto embaixo da mesa para meu isolamento fabuloso.

Esse isolamento na escola e no ambiente familiar às vezes incomoda um pouco. Nós acharmos que a criança sempre tem que ter atividade, até nas festas infantis tem que ter muito muita atividade. Recentemente vi a reclamação de uma criança quando teve um animador de festa infantil. Ela falou, ahh atividade de novo?! Chega de atividade, já tenho muita na escola!

 – A história está perdendo ou ganhando espaço nas escolas?

Gloria Kirinus – Depois de dois anos e pouco de pandemia, a escola certamente está se reconfigurando em relação à presença da contação de história com as crianças na sala de aula.  Porque com máscaras e à distância, se perde muito do gesto, do significado. De fato estamos numa circunstância semelhante a uma pós-guerra e a gente vai ter que reconfigurar esse momento, tão grato, tão estimulante, tão inspirador, tão mobilizador que é o de ouvir histórias.

– Que dificuldades os professores relatam para aproveitar melhor as histórias na transmissão de conhecimento? 

Gloria Kirinus – Eu já passei por algumas escolas que me surpreenderam demais com o estímulo, a inventividade, a vontade e a potência dessa qualidade de presença do professor em relação ao aluno. Do envolvimento com a literatura, com a leitura e com a contação de histórias. 

Em outras escolas já vi uma certa apatia, distância, até descrença pelo lúdico e pela arte em geral. Mas acho que nesses casos, cabe a nós mudar. Cabe a eventos como o ECOH também. Certamente dessa forma podemos gerar um movimento positivo, nesse sentido vocês estão de parabéns. 

Eu tenho ouvido muitos professores se queixando da falta de atenção das crianças. Eu acredito que a qualidade de presença começa com o professor e chega na criança. Mas são tantas as tarefas, o entorno é tão problemático, que nem sempre o professor consegue estar presente com qualidade, então, como cobrar isso do aluno? 

E antes de transmissão de conhecimento temos que pensar nas histórias como inspiração, como encantamento, como um meio de desenvolver a capacidade de surpreender. De criar surpresas com a linguagem, com o enredo e o desenredo da história. Com aquele suspense para saber o final. É uma delícia observar as crianças, os olhos, a atenção para o momento final da surpresa. 

– O ECOH neste ano destaca a importância do resgate de valores ancestrais para a construção de um futuro desejável. Gostaria que você comentasse sobre isso.

Gloria Kirinus – A memória não é água parada, não é água estanque. A memória é inquieta. Ela vai para trás, para o passado, recorda o presente e nos lança para o futuro. É isso que mais me envolve no momento em que escuto uma história.

E, naturalmente, esse resgate da ancestralidade, das culturas, é importantíssimo. No meu caso, eu que venho do país vizinho, do Peru, fazer um mix, alternar histórias de diversos continentes é de extrema importância.

Os estudos de antropologia, principalmente antropologia do imaginário, que é mais minha praia, mostram que cada elemento simbólico que está nas histórias, se redimensiona, nos amplia, nos comove. Nós permite ficarmos assim tão plenos de afetos. Quando digo afeto é em relação à afetividade, sentir-se afetado pela palavra do outro e afetar o outro. Na narração de histórias há inúmeros elementos, o timbre, a melodia, o tempo…

– O que vamos aprender na oficina Os Infinitos de Gaston Bachelard no imaginário do Contador de Histórias?

Gloria Kirinus – Gaston Bachelard é um francês, filósofo e poeta de uma potência incrível. É o meu grande mestre, me acompanha em todos os meus livros teóricos e nas minhas aulas. Nas minhas longas reflexões sobre o imaginário eu encontro Bachelard.

O imaginário no psiquismo humano é a própria experiência da novidade. O que é uma história? Ela nos surpreende, ela está ali para nos mobilizar. Conhecemos pouco e trabalhamos pouco a questão do imaginário. Nesse sentido, eu agradeço muito a oportunidade do convite para o minicurso no ECOH

A imaginação é a própria existência humana e o contador de histórias traz recortes, dádivas, presentes da existência humana. O ouvinte, o receptor, se espelha, cria ecos dentro de si e fica ampliado no momento que recebe uma história nova.

Esse infinitos aos quais o pensador se refere são algo muito simples. A água, a terra, o ar e o fogo. Histórias com ar, histórias com Terra, histórias com fogo, histórias com água. São os elementos significativos da vida, do cotidiano, do entorno. Há uma pergunta que Bachelard se faz num determinado momento. “Diz-me qual é o teu infinito.”

E eu também pergunto, qual é o teu infinito? O seu infinito é o do mar ou do céu? Da terra profunda ou da fogueira? Com certeza você já está selecionando o seu infinito. Tente entrar por aí no reino da imaginação. Qual o infinito que o contador de histórias seleciona para contar? E por que seleciona? Como seleciona? Como conta? 

Os Infinitos de Gaston Bachelard no imaginário do Contador de Histórias – Oficina online com Glória Kirinus, Curitiba, PR   

Dias 30 e 31/08 e 01 e 02/09 – 19h30

Duração: 8 horas – 4 encontros

O encantamento do contador e do receptor de histórias no momento que conta ou ouve uma história perpassa pela palavra plena. Isto é, aquela que integra a sonoridade, a imagem e o significado. Nutrido pelos quatro elementos, os infinitos de Bachelard, água, terra, ar e fogo, o imaginário do contador de histórias propicia o retorno à linguagem original, espessa, significativa, reflexiva. A expressão e a voz do contador, enraizado no saber e no sabor das palavras fundantes, dos elementos primordiais do universo, contribuem com a vitalidade poética do próprio e dos seus ouvintes. 

Bibliografia: textos selecionados da obra de Gaston Bachelard comentados pela ministrante do curso.