Ecoh

“Eu acho que o repertório é algo realmente muito particular. As histórias que cada pessoa decide trazer no seu corpo, na sua boca, para partilhar com os outros, são a sua inscrição no mundo. Algo muito mais de uma descoberta das escolhas éticas, estéticas, artísticas, políticas que estão envolvidas na construção do repertório.” Letícia Liesenfeld

Entrevista por Christina Mattos | Fotos do acervo pessoal da artista

Leticia Liesenfeld participa do 11º ECOH conduzindo o curso online Contar histórias, corpo e memória: desaceleração e proximidade”,em quatro encontros:

  • Memória, corpo e lugar
  • Formas lentas de comunicação
  • Repertórios e intimidades
  • Conversar histórias

Ela é atriz, narradora e professora.

Está cursando Doutorado no programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade de Brasília (UnB). É Mestre em Comunicação e Artes pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), licenciada em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa (ESTC) e Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Atua desde 1997 em produções de teatro e dança e, desde 2003, como contadora de histórias, com atuação no Brasil, Portugal e Alemanha. 

É professora convidada nos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu O Livro para a Infância e Gestos de Escrita, professora e coordenadora, juntamente com Giuliano Tierno, no curso Narração Artística, todos esses cursos vinculados à Faculdade de Conchas (FACONNET) e realizados no polo A Casa Tombada

Ministra cursos ligados aos temas: narração oral e literária, corpo e comunicação. 

Conversamos sobre o curso no ECOH, acompanhe.

– Corpo, memória e lugar. O curso que você vai dar no ECOH começa com um mergulho interior? 

Letícia Liesenfeld – Nesse primeiro encontro, quero pensar a memória, o corpo e o lugar. E, na verdade, as múltiplas combinações desses elementos. O corpo é lugar de memória. Memória é um lugar do corpo. E o corpo é uma memória do lugar também.

Essa multiplicidade implica sim, eu não diria talvez um mergulho interior, mas a imagem da queda me interessa bastante. A imagem da queda que alguns artistas trazem e alguns teóricos da arte também vão discutir como uma ancoragem que não é rígida, não é fixar uma identidade, mas é uma queda no sentido de cair em si. No sentido de tomar contato com esse caminho, pensando como a Maria Helena Martins, um caminho espiralar que essa memória que vem antes de nós, que ela atravessa também o nosso corpo e se projeta no futuro também. Que apresenta marcas de saberes antigos e de aprendizados atuais, mas que faz esse nó, no melhor sentido da palavra. Cria uma materialidade onde se pode verificar atravessamentos da experiência em nós. 

– O que são formas de comunicação lenta?

Letícia Liesenfeld – Quem usa essa expressão, formas lentas de comunicação, é o António Pinto Ribeiro, um teórico português com quem eu tive o privilégio de ter aula na época do mestrado. Ele coloca nessa categoria a leitura, a conversa, os rituais ligados à alimentação, jantar, almoço…E eu estendo essa ideia de comunicação lenta também para o encontro à volta dos contos, das histórias. Isso porque eu acho que sim, tem uma temporalidade própria e que não é de aceleração. É um tempo narrativo que entrelaça acontecimentos, que entrelaça as próprias presenças das pessoas, os afetos, as relações de conversa que também fazem parte da narração. 

– Que critérios você julga importante na escolha do repertório de histórias?

Letícia Liesenfeld – Eu acho que o repertório é algo realmente muito particular. As histórias que cada pessoa decide trazer no seu corpo, na sua boca, para partilhar com os outros, são a sua inscrição no mundo. Algo muito mais de uma descoberta, das escolhas éticas, estéticas, artísticas, políticas que estão envolvidas na construção do repertório. A busca do repertório é muito subjetiva, não sempre, mas muito sem nenhum tipo de regra, sem fórmula. É um caminho, uma viagem a ser feita. Acho que quem tenta encurtar esse trajeto acaba talvez atropelando alguma escolha mais interessante do que poderia supor. Conversar histórias implica muito mais num jogo de condições de surgimento. De contato com o que nos interessa dizer. O que nos importa partilhar da nossa história, da nossa memória e a relação disso com as histórias.

– Conversar histórias não é sobre técnica?

 Letícia Liesenfeld – É eventualmente sobre o que a ideia de uma técnica envolve inicialmente. Claro, eu posso contribuir se eu tiver uma técnica, um trabalho, uma pesquisa que mobilize corpo e voz. Sem dúvida os saberes relacionados ao contar histórias são passíveis de serem aprofundados ao longo da viagem do contador de histórias, nessa travessia que é longa e na qual a técnica vem alimentando e não inaugurando o percurso. 

– Você faz parte da coordenação do curso de pós-graduação em narrativa oral d’A Casa Tombada vinculado à FACONNECT – Faculdade de Conchas (SP). Conte sobre esse trabalho.

Letícia Liesenfeld – Giuliano Tierno é o fundador d’A Casa e criador do curso Narração Artística, Caminhos para Contar Histórias em Contexto Urbano. Hoje somos parceiros na coordenação desse curso que já está na 16ª turma (eu entrei na quinta turma). Já temos um percurso interessante para observar. 

Acho que reúne muito ideias que eu comentei aqui. A busca de uma singularidade, de um aprofundamento no sentido de encontrar o seu contato com a experiência de narrar.

O que eu quero dizer, como eu quero dizer? Como é esse meu gesto de partilha. O que me interessa nessa partilha, como eu me abro para esse encontro? Como eu posso estabelecer a escuta como um ponto de partida, um ponto de convite para aproximação com o outro?

Tem sido um lugar de muito aprendizado e muita troca. A gente fala sempre do desassossego. Temos longas conversas a respeito de caminhos a trilhar, de mudanças a fazer, de demandas que os alunos têm, de coisas que a gente sente que podem ser mais importantes ou mais urgentes, a partir das experiências que os alunos trazem também.

É um curso em que a gente entrelaça saberes profundamente. Somos muito próximos, muito honestos na conversa sobre se questionar o tempo todo com relação ao caminho que a gente vai buscando.

– Qual a tua percepção sobre o ECOH?

Letícia Liesenfeld – Um dos pontos de singularidade desse encontro é a maneira como as coisas são feitas, o acolhimento que a gente recebe, o aconchego. É um festival grande, que reúne muitos eventos, muitas pessoas vindas de muitos lugares diferentes, e isso não é uma tarefa fácil. Mas tudo é realizado com uma absurda delicadeza. Acontece como uma dança num ritmo de muito afeto e gentileza. 

Outro ponto importante e singular é a curadoria do ECOH. É tão bem-feita que dá curiosidade de saber mais, de perceber melhor como se dá a seleção do repertório e a composição da programação. Não se trata apenas de definir quem vem, tem uma camada mais sutil na composição. O que você vai juntar com o que? Qual é a sequência de atividades? Que grupos você vai constelar, colocar mais perto? Isso acontece de uma maneira muito, muito feliz no caso do ECOH, em termos de curadoria, e é algo muito especial.

Esse cuidado todo surge para o público como coerência conceitual. Clareza no que se acredita interessante para colocar na ciranda de conversa. Isso é muito importante porque às vezes a gente tem coisas de qualidade, mas que são apresentadas de uma forma muito solta e acabam não trazendo consigo um contexto de ideias, de estéticas, de éticas e de políticas.

A curadoria é a cara e a inscrição do festival como como evento. No caso do ECOH acontece maravilhosamente bem. Aqui temos uma vivência, dentro do desenho do encontro, que foi pensada de fio a pavio. O ECOH traz é aberturas, conversas e novidades, mas tudo muito bem pensado. É um privilégio poder estar perto, fazer parte de algo tão especial, tão intenso e amoroso.