Ecoh

Jornada bendita: uma kombi, duas bicicletas, muita coragem e amor

Um pouco da história da Cia. Benedita na Estrada, formada por Mirna Rolim e Bruno Dutra. A companhia abre o 12º ECOH com o espetáculo “O Mede Palmo dá Volta ao Mundo”, no sábado (19 de agosto).

Por Christina Mattos 

Uma contadora de histórias, Mirna Rolim, e um músico, Bruno Dutra, decidem pegar a estrada com a Benedita, a kombi batizada assim pra homenagear o avô dele e o santo de devoção do casal, São Benedito

Eles deixam o emprego, vendem tudo o que têm e partem de Campinas para conhecer outras paragens pelo Brasil, contando e ouvindo histórias, procuram um novo lugar pra viver. 

Seis meses depois, aposentam a kombi e seguem a viagem em bicicletas, a “Benê” e a “Dita”. A aventura dura três anos, de 2017 a 2020, até que param em Caldas, cidade mineira onde vivem agora com a Mayê, a filhinha que nasceu no ano passado, para alegrar ainda mais essa história. 

Bendita Benedita!

Foto: Rafaela Bermond

Mirna e Bruno estiveram em Londrina, participando do ECOH, em março de 2020, pouco antes do início da pandemia do coronavírus. Eles são artistas educadores de múltiplos talentos. 

Bruno é biólogo pela Unicamp, mestre em saneamento e ambiente, desenvolve tecnologias educacionais para despertar o interesse das crianças pelo lado criativo da ciência. Apaixonado por música, toca flauta e percussão, é também dançarino e palhaço. Participou do grupo de pífanos Flautins Matuá durante 13 anos, período em que ministrou oficinas de ritmos brasileiros e se apresentou pelo Brasil e na Europa. 

Mirna é formada em Artes Visuais, pela Unicamp, atua como palhaça, cantora e contadora de histórias. Sua experiência inclui apresentações em praças, espaços culturais, unidades do SESC e SESI, escolas e eventos em 9 estados brasileiros e 70 cidades, além de aldeias indígenas. É ainda inventora de brinquedos e brincadeiras

Ela revela que percorreu um longo caminho até perceber que queria ser contadora de histórias.

“Comecei a contar histórias em 2012, mas já existia uma paixão. Com 15 anos eu li o livro “Mulheres que Correm com os Lobos” e descobri a narração de histórias como ofício. Com 18 anos, eu fui ao Fórum Social Mundial e caí de paraquedas num encontro de contadores de histórias. Fiquei muito encantada, era uma roda de histórias, cada um contava uma. Eu me lembro, novinha de tudo, muito encantada com aquilo, mas ainda não era uma possibilidade de fazer para mim, era algo que eu gostava de ver. Um dia uma amiga me convidou para dar uma oficina num evento, eu falei que ia, mas queria contar uma história e não dar uma oficina. Eu nunca tinha contado a história e não sei de onde veio essa fala. Não era uma coisa que eu andava refletindo a respeito. Simplesmente saiu da minha boca. Preparei então uma história do livro “Mulheres que Correm com os Lobos”, “A mulher esqueleto”, e fui contar. Estava muito nervosa, mas lembrando de uma frase de uma professora de dança que eu tive, a Beth Bastos: aquilo que você faz com convicção é bom. No que eu comecei a contar a história, um silêncio envolveu a nós todos, criou uma atmosfera da qual todos nós fazíamos parte. Eu lembro que fiquei impressionada e falei pra mim mesma: Como isso é poderoso! É o que eu quero fazer da minha vida! Por que eu não tô fazendo isso ainda? Desde então eu passei a contar história, fui contar nas praças e a partir daí fui me desenvolvendo.”

Quatro anos depois de se descobrir contadora de histórias, em 2016, Mirna e Bruno criaram a Cia. Benedita na Estrada e se entregaram a arte itinerante. Levando a cada cidade que visitam suas histórias e brincadeiras. Uma decisão desafiadora em vários sentidos e que trouxe muitos aprendizados, como conta Bruno.

“O maior desafio pra mim foi contar história na rua, por exemplo, ao lado de um parquinho de praça ou concorrendo com barulho de carro. É um desafio bem interessante, vamos nos acostumando a lidar com essa concorrência e a prender a atenção das crianças. A rua é uma escola maravilhosa, a melhor que existe para o artista de maneira geral, não só para contação de histórias. Se apresentando muitas vezes na rua a gente aprender a pescar as pessoas com o olhar, ser verdadeiro, improvisar bem…São pérolas que a gente ganha nesse trabalho. A Mirna é uma ótima improvisadora e eu aprendo com ela.”

Pandemia e maternidade 

A dupla seguiu afinada e foi ganhando reconhecimento pelo trabalho criativo e potente. Quando estavam com mais de 20 apresentações marcadas na agenda, projeto de circulação de espetáculos aprovado em várias unidades do SESC, veio a pandemia. 

Como muita gente, eles precisaram se reinventar, Mirna voltou a escrever contos, algo que não fazia desde a adolescência.

Foi muito bom porque acabamos lançando um projeto que se chamava “Contos e Cantos para Abraçar “. A gente presenteava as pessoas com histórias por videochamada. Se uma pessoa queria presentear alguém, a gente marcava um horário, ligava pra quem seria presenteado e contava uma história escolhida de acordo com a intenção de quem nos contratou. Foi um processo muito bonito, apresentamos histórias para pessoas em quem jamais a gente chegaria, por exemplo uma senhora que estava na UTI. Foi muito poderoso, ao mesmo tempo que a pandemia foi um momento difícil, profissionalmente foi de muita criação, afinal precisamos inventar outras maneiras de trabalhar.”  

No final da pandemia, Mirna e Bruno engravidaram. Quando a Mayê nasceu, a Cia. Benedita fez uma pausa, o trabalho está sendo retomado agora. Como família eles estão aprendendo a vencer novos desafios. 

“Pra mim o momento atual também está sendo um desafio, vivo uma reconstrução do “eu”, depois de passar pelo portal da maternidade. É bem desafiador, estou tentando entender quem é a Mirna profissional agora nesse contexto, tentando pegar de novo ritmo da produção, voltar à ativa sem atropelar os novos ritmos que surgiram. Criança tem outro tempo, é muito importante a gente respeitar esse tempo, mas estamos num mundo capitalista. Como a gente é faz essas realidades se encontrarem?”, questiona Mirna.

Foto: Rafaela Bermond

O Mede Palmo dá a Volta ao Mundo

A história que abre o 12º ECOH – O Mede Palmo dá Volta ao Mundo -, foi inventada por Mirna aos 8 anos de idade, como trabalho escolar. 

“A proposta da professora de redação era criar uma história em câmera lenta, uma história que demorasse para acontecer. Então eu criei essa história do mede palmo. Foi meu pai quem me ensinou o que era um mede palmo.  Pra quem não sabe, é uma lagarta que anda arqueando o corpo. Um bichinho pequenininho dando a volta ao mundo, só podia ser uma história em câmera lenta. A ideia partiu dessa lentidão e a história ficou guardada na minha memória durante anos, mas nem pensava em contar. Em 2018 a gente estava querendo construir um espetáculo novo, mas ainda não sabia qual. Um dia eu estava com um livro na mão, olho pra baixo e vejo um mede palmo andando na borda do livro. Então pensei: a resposta me foi dada. E é muito louco, porque tinha super a ver com o momento que a gente está vivendo. A gente estava viajando de bicicleta, então essa volta ao mundo com passinhos bem miúdos, era exatamente a metáfora do que a gente estava vivendo.”

Bruno concorda:

“Eu acho que a que O Mede Palmo dá a Volta ao Mundo é mesmo a metáfora da nossa viagem de bicicleta. A gente não conhece o mundo inteiro, conhece o pedacinho por onde passou e a gente fala um pouquinho, de uma forma figurativa, da viagem. A gente não precisa de muito, mas tem que desapegar de muitas coisas pra viajar, carregar o que cabe no alforje de uma bicicleta. Travar desafios de trabalho, se jogar na instabilidade, mas uma instabilidade maravilhosa.” 

No 12º ECOH a Cia Benedita faz duas apresentações do espetáculo “O Mede Palmo dá a Volta ao Mundo”, no sábado (19), às 11h, no Parque de Exposições Ney Braga, e no domingo (20), às 10h, na praça em frente à Vila Cultural Alma Brasil (Rua Argentina, 693, Vila Larsen 1). Não percam.

Por que contar histórias?

 “Me apaixoneipela contação de histórias primeiro por causa dos mestres da cultura popular. Meu mestre de capoeira, meu pai de santo do Candomblé, mestres de cavalo-marinho, de coco e tantos outros que eu conheci por aí. É um aprendizado que chega através da ancestralidade, numa relação de mestres para discípulos, em que você se senta no chão obrigatoriamente para ouvir histórias de pessoas que carregam sabedoria. Quando a gente viajou o Brasil de bicicleta, percebemos que as pessoas que estão nos cantos mais escondidos, que vivem na simplicidade, que viveram mais tempo, tem muitas histórias pra contar. Outro motivo que me faz contar histórias é a força da narrativa oral, da contação de causos. Acho que qualquer tipo de conhecimento que você transforma em narrativa chega mais profundamente porque passa pelo coração.” 

Bruno Dutra 

“Mesmo para quem conta, narrar uma história requer escuta e a escuta requer tempo. Um tempo dilatado para o qual a gente não está acostumado a dar espaço no nosso dia a dia. Falo por mim também, contar histórias me salva muitas vezes porque estamos no mundo da ansiedade, sempre projetando o depois, o tem que fazer em seguida. Acredito que narrar histórias e ouvir histórias é um lugar de assentar no momento presente e, mais do que isso, permite que o momento presente tome conta da gente. Sinto que as histórias dilatam muitas coisas, por exemplo o nosso espaço interno para conseguir criar mundos dentro da gente através da imaginação. Às vezes de uma maneira até sem querer, começamos ouvir e aquele espaço, aquele cenário, aquele lugar vai sendo montado dentro de nós, ganhamos memórias que nem faziam parte da nossa vida, mas agora aquele personagem, aquele lugar moram dentro da gente também. Assim as histórias também dilatam a nossa inteligência emocional, a capacidade de entender empaticamente as muitas formas de manifestações humanas que existem. Elas ampliam a nossa capacidade de apreender a diversidade, nos possibilitam encontrar caminhos para entender que ser humano é algo muito vasto. Tudo isso é extremamente necessário, algo que nos humaniza e que é um caminho necessário para qualquer época, mas para hoje em dia, ainda mais. É desse lugar que estamos nos perdendo, estamos nos entregando cada vez mais para uma urgência, para certezas absolutas, para a exclusão do outro, daquilo que é diferente da gente. A narrativa das histórias traz de volta tudo o que está sendo meio que expulso pela pressa capitalista.”

Mirna Rolim

* Você pode ver mais do trabalho de Mirna Rolim e Bruno Dutra no canal da Cia. Benedita na Estrada no YouTube.