Ecoh

Os caminhos criativos e de escuta de narradores tradicionais de histórias

Texto Erika Pelegrino/Colaboração Lucas Godoy // Imagens Valéria Félix

Josiane Geroldi, de Chapecó (SC), é contadora de histórias reconhecida em todo o país, criadora a Cia CONTACAUSOS. A Cia tem foco na produção artística, na pesquisa e na montagem de espetáculos narrativos pautados na sabedoria da cultura popular oral brasileira. Os espetáculos destacam-se pela pesquisa, cuidado estético e poético.

Para esta edição do ECOH, ela presenteou o público com lives no formato de entrevistas, com  a proposta de conversar com narradores tradicionais, sobre seus processos de construção da voz narrativa, “a partir da escuta, do olhar atento, da observação das pessoas (…),  a partir dessa experiência de escuta que é de corpo, atenta a quem está perto.”

Foram três lives/entrevistas. A primeira, que trazemos aqui, foi “Pesquisa em narração de histórias – Episódio 1: Histórias do Sertão do Urucuia – Josiane Geroldi convida Paulo Freire.”

Paulo Freire é violeiro, compositor, escritor e contador de causos reconhecido por onde passa. Aprendeu a tocar viola no sertão de Urucuia, em Minas Gerais. Desde então foram vários CD´s gravados, viagens, livros e espetáculos por todo o Brasil

Com vocês alguns trechos da prosa entre Josiane Geroldi e Paulo Freire!

Hoje tenho uma alegria imensa e meu coração está cheio, porque vou conversar com uma das pessoas que é meu mestre também, e tenho muito orgulho de conviver com ele, de viajar pelo Brasil apresentando o Imagina Só, espetáculo que criamos a partir de um encontro que a Regina Machado, do Boca do Céu, nos propôs. A partir disso criamos laços de reflexão sobre a escuta e os processos criativos.

Eu sempre tive muita vontade de conversar com o Paulo, e abrir para que vocês perguntassem também, para saber o que se passa por dentro do Paulo Freire. No trabalho dele, vemos o quanto ele é atravessado pelas experiências que teve com as pessoas, com os mestres. Uma das coisas que ficam muito fortes nas apresentações e nos livros, é essa experiência no sertão do Urucuia, onde ele aprendeu a tocar viola com os mestres.

Convido você para que se abra para imaginar a experiência desses narradores, a caminhada deles para ir ao encontro das histórias, da realidade das comunidades e que, de alguma maneira, a gente como ouvinte possa também se alimentar.

Josiane Geroldi – Temos acompanhado muito, nas suas lives, que não tem como separar o artista da experiência humana. Quando você nos conta uma história ou canta uma música, de alguma forma as pessoas que as transmitiram também estão contigo, e talvez seja isso que nos toque tanto, porque de alguma maneira por sua palavra temos a oportunidade de nos conectar com essas pessoas. É uma baita de uma responsabilidade transmitir essa conversa.

Você podia começar se apresentando, a partir de uma música que fale sobre algo que você tenha aprendido com seus mestres no Urucuia.

Paulo Freire – É muito bom estar aqui, sou fã do ECOH. Tenho um caso de amor com Londrina. O que junta nós tudo é esse amor forte, com pandemia, sem pandemia, a gente procura sempre estar junto, tocando o barquinho, devagar, mas tocando o barquinho. Me ocorreu uma música aqui que eu vi nascer durante a Folia de Reis, no Sertão de Urucuia. Por causa de um acontecido que tem nessa música, dois caboclos fizeram a música no instante do acontecido. (Ouça na música no vídeo).

Josiane Geroldi – De onde veio essa, Paulo. Vamos engatando a prosa.

Paulo Freire – Eu estava em uma Folia de Reis (no Sertão do Urucuia). Quando fui morar no sertão, em 1977, era bem marcado isso, que no dia 25 de dezembro as folias saíam, com vários sertanejos, que iam cantando de casa em casa o nascimento de Jesus. Eles só andam à noite, quer dizer, andavam, agora estão mais ou menos. Eles andavam à noite, porque os reis magos se guiavam pela estrela do Oriente, então só podiam andar à noite.

A Folia tem um código de ética. Até 6 de janeiro, o folião não pode sair pra namorar, não pode nem voltar pra casa. E tinha um folião, o Geraldo, que cantava e ficava meio olhando para as moças. Ele sapateava até nas paredes, subia e descia, bom de viola. E a gente estava nesta folia e fomos cantar na casa de João Beirão que tinha uma filha bonita que era um absurdo, Maria Beirão. E eu vi o Geraldo cantando e esticando o olho para Maria, e dando um sorrisinho e mandando um beijinho.

Quando a gente terminou a cantoria, a Maria ficou brava, saiu para o terreiro e o Geraldo foi atrás. Eu segui eles. Geraldo chegou pra ela e falou: “Maria, o seu nome principia na palma da minha mão, Maria.” E ele foi nessa conversinha ruim. Ela deu um murro na cara desse Geraldo que ele caiu longe.

Agora, o problema pro Geraldo não foi o murro que a Maria deu nele, que foi muito bem dado. O problema foi que esses dois caboclos, o Nó e o Vá, que são bons pra inventar música na hora, viram isso também e já fizeram essa música e chamaram todo mundo pra dançar e cantar. E chamaram o Geraldo que estava meio assim, tinha acabado de levar um murro. “Mostra pra esse povo que você é o bom.” “Vou pegar minha violinha e vou.” Geraldo cantou um verso, cantou outro, depois que Geraldo cantou o terceiro verso, dançando no meio de todo mundo, e a Maria, também, eles falaram: “Geraldo, olha esse verso: ‘Mas apanhou Geraldo, sua fama já acabou, mas apanhou de Maria, apanhou de João, mas quem bateu foi Maria, na casa de João Beirão’.”

Esse Geraldo saiu corrido dali e sumiu no mundo. Agora, o pior de tudo, dona Jô, é que as notícias correm mais ligeiro do que a gente consegue andar, nem o avião dá conta disso. Onde o Geraldo ia chegando o povo já começava (Paulo assobia o refrão da música).

Josiane Geroldi – (…) como essas histórias vão se compondo com a viola e construindo a sua voz artística? E quando você se reconheceu como esse narrador que narra o Sertão?

Paulo Freire – Seu Manoel estava em uma folia uma vez e o cantador que contava a história dos reis magos fez uma cantoria muito longa que não terminava, e seu Manoel assistindo assim encostado na parede. Quando terminou, eu fui embora pra casa com ele. Eu falei: “Seu Manoel, ele é muito bom né? Mas foi muito longo o que ele cantou, né?” Seu Manoel falou assim: “Paulo, o pouco não aparece. Mas o muito aborrece.”

Então, o seu Manoel sempre tinha coisinhas assim. A técnica de viola que eles tocam é só com os dois dedos.  Eu já tocava violão e guitarra, e violão você toca com 4 dedos. Quando eu cheguei lá eu queria aprender a tocar que nem seu Manoel. Então, afinei a viola e fui tentando aprender a técnica deles sempre com dois dedos. Aí um dia estou na casa do seu Manoel e comecei a tocar um choro no violão. Seu Manoel, olhou e falou: “Paulo eu estou vendo que no violão você usa todos os dedos. Por que na viola você só usa dois?” “Porque eu quero tocar igual ao senhor.” “Você tá muito certo. Então, você faz assim, aprende comigo e toca com esses dois (polegar e indicador), mas usa os outros também que você sabe.”

Eu só fui perceber o que ele falou anos depois, quando eu quis montar um trabalho tocando a viola que nem seu Manoel, contando as histórias que nem eles.

Aí eu percebi que eu nunca vou conseguir tocar viola igualzinho seu Manoel, nunca vou conseguir contar uma história como aquele povo do sertão conta. Porque tem um sentimento, a mão pesada da enxada pegando na viola, é um mundo ali.

Então, quase 10 anos depois, eu percebi que o negócio só ia começar a andar se eu pegasse as histórias que eu ouvi lá e transformasse elas no meu jeito, tocar as músicas do seu Manoel usando tudo que eu aprendi: o choro, o jazz, o rock. Quer dizer, usar os outros dedos. Eu só fui descobrir um caminho quando parei de querer imitar eles e passei a fazer as coisas da minha maneira.

Então, se eu vou contar uma história sobre um mito eu procuro saber bastante sobre ele, vou nas pessoas, faço igual a senhora (Josiane Geroldi), fico atormentando todo mundo pra contar, pra repetir e vou colocando assuntos meus lá dentro.

Uma coisa que meu pai falava, principalmente quando escrevia, “Se coloca na ação. Se você se colocar na ação o texto pode ficar muito mais forte.” Então, quando eu conto um causo eu procuro encontrar com as mulas sem cabeça.

Josiane Geroldi – (…) como é importante também ter essa consciência social. Eu vou na casa do caboclo ouço a história dele, e como de alguma maneira eu me debruço sobre a situação dessas pessoas (…) Há uma realidade dessas pessoas (…) As publicações das histórias são também um registro dessas realidades?

Paulo Freire – Nada é muito planejado. Quando eu fiz o Nuá, são 12 causos, 12 músicas sobre mitos. Quando fui escrever os causos, fiquei com vontade de contar algumas histórias que a antropóloga Betty Mindin, de quem sou amigo, tinha me contado, a Cabeça Voadora, por exemplo, uma história indígena.

Aí falei com ela que o meu medo era ficar inventando muito em cima e sair algo muito irresponsável. Ela falou que a função do antropólogo é contar a história como eles estão contando, dar o registro de onde ela é, dar o crédito, mas a função do criador não é essa, “então você fique à vontade”.

Então, procuro ter uma responsabilidade de situar o mito, pegar as características principais dele, respeitar muito a existência, porque todo mito não existe à toa. O presidente da Associação de Criadores de Lobisomens de Joanópolis (SP), Valter Cassalho diz que o mito tem uma função social muito grande. Então, procuro essa razão de existir do mito e vou misturando nas histórias, mas eu não tenho uma preocupação de registrar (…)

Gostou? A prosa completa está aqui

Josiane também entrevistou Aline Cântia sobre as histórias de Sebastião Farinhada e Emile Andrade, sobre as histórias de Luiza Tereza. Você assisti aqui essas duas prosas, também.

Pesquisa em Narração de Histórias II – Histórias de Luzia Tereza?

Pesquisa em Narração de Histórias III – Histórias de Sebastião Farinhada, está aqui, também.