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“Quando nós conhecemos a cultura preta, por meio dos mitos e contos africanos e afro-brasileiros, temos uma relação mais direta com a voz do protagonista. Não é quem colonizou, quem escravizou, quem explorou que está falando sobre o assunto. É a própria população contando da sua origem.” Giselda Perê

Entrevista por Christina Mattos | Fotos enviadas pela artista e educadora

Agbalá é uma cabaça encantada que guarda histórias cheias de sabedoria ancestral africana e afro-brasileira. Giselda Perê é a fundadora do Agbalá Conta – Núcleo de Pesquisa e Narração de Histórias das Culturas Negras, em São Paulo. 

No dia 1 de setembro o ECOH programou a oficinaEducação Antirracista com Histórias – Um olhar sobre as narrativas em sala de aula, com a artista e educadora.

Mestra em Arte Educação pelo Instituto de Artes da Unesp, Giselda Perê tem mais de 20 anos de experiência e propõe uma prática de combate ao racismo baseada na formação de professores por meio de um repertório de mitos e contos africanos.

A oficina é dedicada aos professores e professoras do Projeto Palavras Andantes, da Secretaria Municipal de Educação de Londrina, mas está aberta a todos os interessados.

A intenção é refletir sobre diversas questões. 

Quais histórias ouvimos? Quais contamos? 

Qual é o perigo da História Única?

Que caminhos podemos descobrir por meio da tradição oral, das histórias de origem e da literatura infantojuvenil?

Conversamos com Giselda Perê sobre como o racismo se manifesta nas escolas e porque se perpetua em nossa sociedade. 

– Como o racismo e a intolerância se manifestam nas escolas? 

Giselda Perê – Eu acho que o racismo se manifesta do mesmo modo, desde sempre, que é principalmente pela construção do currículo escolar. Não são incluídas as sabedorias, os conhecimentos e a história da população preta e também dos ancestrais indígenas. Isso é o primeiro ponto de como o racismo se manifesta, se expressa no contexto escolar.

Mas o racismo tem várias camadas. Desde as das relações entre professores e crianças que rotulam crianças pretas. Por já entender, já julgar que aquela criança não tem uma capacidade cognitiva, não tem uma inteligência. Enfim, pensa coisas pejorativas sobre aquela criança. 

Isso eu falo baseado na minha pesquisa de mestrado, onde eu fiz um exercício com professores de escolas públicas, pedindo que manifestassem o que pensavam, num primeiro momento, em relação às crianças pretas.

O que está ali, impregnado nesse imaginário racista, sempre está relacionado ao pensamento de que é uma criança que não tem família, que não tem acompanhamento, que tem dificuldade escolar, que é violenta, que não tem futuro. São inúmeros rótulos. 

Outras expressões do racismo também acontecem na escola. Desde as relações também de professoras que, apoiadas pela Lei 10639 de 2003, constroem seu planejamento, incluindo as culturas feitas e também as culturas indígenas e são perseguidas.  Recebo inúmeros relatos de professores que são perseguidos pelos gestores. 

Isso está muito ligado ao racismo religioso. A perseguição também acontece nos aspectos das pessoas que são de religião de matriz africana. Elas não podem expressar, não podem se manifestar, não podem usar suas simbologias dentro do contexto escolar porque são perseguidas, são rotuladas como adoradoras do demônio, por exemplo. Então a gente vive, um momento bem difícil. 

Você percebe melhora ou piora comparado ao seu tempo de criança?

Giselda Perê – Em 2008 eu ingressei como professora do Estado de São Paulo, como professora de Artes e em 2010 eu saí de licença médica porque adoeci. Tive burnout e a principal razão, que eu consegui identificar no meu processo terapêutico e no meu tratamento, é que para mim foi um choque muito grande em 2008, ver os mesmos aspectos do racismo que havia na escola da época em que eu era criança, na década de 80.

Sei que de 2008 para hoje já se passaram 14 anos, mas algumas escolas pararam no tempo. Estão lá ainda na minha infância, onde você precisava se adequar e tentar se encaixar naquele modelo pré-estabelecido. E mesmo com todo o esforço, tentando ser algo que você não era, nunca ser aceito.

Eu acho que hoje tem uma melhora de acesso. Algumas professoras e professores, algumas famílias, também têm acesso a materiais que fornecem informação sobre culturas pretas. Acho que o que muda hoje é que o debate sobre o racismo, não de modo geral, mas em algumas realidades escolares ele acontece.

Mas a gente está muito, mas muito distante, de ter uma escola, principalmente na rede pública, em que exista uma igualdade de direitos, em que o currículo traga conteúdos que falem das nossas identidades para além do eurocentrismo habitual. Na forma de se ensinar o que é belo, o que é bom, o que é certo.

– Por que a história única sobre a negritude se perpetua?

Giselda Perê – A história única que se perpetua é a história da exclusão, da exploração e da escravidão. Da marginalização, das violências. E ela se perpetua porque a sociedade continua repetindo essa história nas suas mídias, nos seus livros didáticos, nas formações, nas faculdades onde estão se formando profissionais. 

Essa mesma história sobre a população negra continua sendo contada nas nossas estruturas, porque nossa sociedade tem um racismo estrutural. E o racismo estrutural se mantém por reproduzir essa única história sobre nós.

Então é assim que ele sobrevive, assim que ele se sustenta. Mantendo essa mesma narrativa, onde não associa a gente ao poder, ao conhecimento, à sabedoria, à beleza, à diversidade. 

Somos diversos. As populações pretas são diversas no Brasil e no mundo. No próprio continente africano que é a nossa origem.

Ainda há muita resistência no debate sobre o racismo nos contextos escolares e nos contextos artísticos nos quais eu tenho mais experiência.

– Que possibilidades se abrem quando um professor amplia seu conhecimento por meio dos mitos e contos africanos e afro-brasileiros?

Giselda Perê – Quando nós conhecemos a cultura preta, por meio dos mitos e contos africanos e afro-brasileiros, temos uma relação mais direta com a voz do protagonista. Não é quem colonizou, quem escravizou, quem explorou que está falando sobre o assunto. É a própria população contando da sua origem.

É importante o professor conhecer a história por essa perspectiva e não apenas pela do colonizador que está quase sempre colocando sobre nós um olhar de estranheza. Fazendo comparações e relações com as referências brancas e eurocêntricas. As histórias tradicionais, incluindo os mitos e contos, elas nos proporcionam o contato com o que há de mais humano de cada população, de cada cultura.

O racismo, na perspectiva da população preta, nos desumaniza, rouba nossa dignidade humana. Quando o professor faz contato com essas histórias, amplia o seu repertório cultural. Exercita a sua empatia e o conhecimento sobre o outro é também conhecer sobre a si próprio, não é? 

É também um exercício de reconhecimento sobre os seus racismos, porque é importante para se conhecer essas histórias, compreender a existência do racismo, aceitar que ele está no nosso cotidiano.

Por isso a gente precisa rever as nossas trajetórias formativas, para compreender como a gente consolidou essas ideias racistas que por muitas vezes orientam práticas pedagógicas Brasil afora. 

– Conte um pouco sobre a condução e o conteúdo da sua oficina virtual no ECOH.

Giselda Perê – Na oficina que a gente vai vivenciar eu vou trazer primeiro entendimento o conceito do antirracismo. Contextualizar historicamente. Compreender como ele nasce e olhar um pouco antes dele. Como o movimento negro constrói essa luta que hoje a gente está chamando de antirracismo, mas que tem uma história anterior.

A gente vai conhecer histórias e caminhos possíveis de se fazer com essas histórias no contexto familiar, no contexto escolar e de formação acadêmica. Tanto por meio das histórias tradicionais da oralidade, quanto as histórias pretas também das literaturas infantis e infantojuvenis. 

Eu vou apresentar um repertório, trazer referências e provocar reflexões de como essas histórias podem nos orientar, nos dar um caminho para uma educação antirracista em diferentes contextos, principalmente na escola, mas também olhando para a nossa vida privada. 

– Como um professor pode se tornar um bom narrador, Giselda?

Giselda Perê – Eu me descobri narradora de histórias na minha trajetória como professora. Eu ensinava crianças da educação infantil, do ensino fundamental. Depois da faculdade me tornei professora de Artes e assim eu ampliei as idades com as quais eu trabalhava. 

Mas eu me descobri narradora por conta dos meus alunos. Eles é que me disseram, em diferentes momentos e de diferentes formas, que eu eles gostavam do meu jeito de dar aula por eu contar histórias.

Nesses momentos eu comecei a fazer perguntas que culminaram na minha dissertação de mestrado, onde busquei fazer relações com a prática pedagógica, com aspectos do nosso cotidiano de sala de aula onde a palavra, a narração, o construir narrativas é algo muito cotidiano.

Então fui fazer ligações com os narradores tradicionais africanos. Saber dos valores que eles preservam e das técnicas que eles utilizam para se manter em conexão com a oralidade. 

Eu acho que um professor se torna um bom narrador quando ele compreende o poder da narrativa, quando ele compreende o poder que está com ele cotidianamente em sala de aula, quando ele está ali construindo narrativas, nutrindo imaginários de crianças e jovens. 

Um professor se torna um bom narrador olhando para a sua própria experiência de vida, para sua própria história de origem, passando a narrar essas histórias. Compreendendo a sua força e a sua potência para além das histórias que a gente aprende nos livros. Também as histórias das nossas vivências, das nossas experiências que estão relacionadas diretamente com esse conceito da oralidade, conceito que eu vou apresentar no nosso curso.