Ecoh

Uma ponte infinita de possibilidades tecida para a vida

Entrevista e texto por Erika Pelegrino // Imagens capturadas por Valéria Félix

Warley Goulart é narrador de histórias, diretor do grupo Os Tapetes Contadores de Histórias e participou do ECOH com a narração das histórias: Nunca tá Contente, O Casamento da Onça com a Filha da Cotia, O Congo Vem Aí, e a apresentação do vídeo “Salma ou Saloma”, do coletivo Cada Um no Seu Quadrado, criado por vários contadores de todo país, para pesquisar essa nova linguagem, assim que a pandemia começou.

Criar possibilidades em espaços que, aparentemente, não seriam próprios à narração de histórias é uma especialidade de Warley e seu grupo. Foi assim ao levar em 2014 a contação de histórias para dentro da galeria de arte, foi assim ao ampliar o leque de possibilidades dos tapetes como cenários para maquetes, pergaminhos, e outros formatos, e, claro, é assim, agora, com o meio digital.

Nessa entrevista, um pouco desse ser brincante, pesquisador, contador de histórias, capaz de tecer uma ponte de possibilidades infinitas entre o artesanal, a tradição e o novo.

“O Congo vem Aí””

Gostaria que você contasse sobre o seu trabalho.  Faço parte de um grupo, estamos há 22 anos juntos. Nos conhecemos na escola de teatro onde fizemos treinamento com o diretor teatral e contador de histórias francês, Tarak Hamman. A mãe dele, Clotilde Hamman, fazia um projeto de arte-educação e incentivo à leitura no interior da França, o Raconte-Tapis, com criação de cenários de tapetes para contar histórias. Esse projeto tem mais de 35 anos.

Tivemos contato com Tarak, em 1998, e por três anos o trouxemos para o Rio de Janeiro para fazer formação. Começamos a contar histórias com o acervo de 16 tapetes do projeto francês.

Em 2001, a contadora de histórias Maria Clara Cavalcanti, do grupo Confabulando, do Rio de Janeiro, me aconselhou: “ Warley, vocês vão mudar muito enquanto grupo se costurarem seus próprios materiais, a partir de histórias brasileiras”.

Fui para a casa da minha mãe, no interior do Rio, e costurei um tapete para o conto popular mineiro, A Nuvem Triste.  A partir daí passamos a ser, em outros termos, Os Tapetes Contadores de Histórias.

Em 2002, a Prefeitura do Rio nos pediu peças para contos infanto-juvenis de Carlos Drummond de Andrade.

Em 2004, veio Cabe na Mala, e começamos a costurar outros cenários em tecidos, além dos tapetes, como malas, aventais, maquetes, pergaminhos, pranchas.

Dos tapetes a vários formatos diferentes – A gente vem há 22 anos fazendo pesquisas, de acordo com cada projeto.

Para a história do Macaco e a filha da Cotia (contada no ECOH), Edison Mego do meu grupo costurou uma árvore-maquete.

A história O Congo Vem Aí (também contada no ECOH) foi uma ilustração que fiz para um livro.  Foi a primeira vez que eu não parti da história para fazer os tapetes. Foi um projeto de uma editora (Editora Global), o Cadu Cineli fez o desenho e a costura é minha. Fizemos 12 pranchas (pequenos tapetes que trazem os cenários da história), que foram fotografadas para a ilustração.

Para a história O Rei que ficou Cego, um grande épico, conto popular brasileiro, na versão de Ricardo de Azevedo, costurei um tapete gigante, de 12 metros. Nós ficávamos dentro do tapete para contar a história.

Hoje, temos um acervo de 80 cenários que criamos desde 2001. São desde peças pequeníssimas até gigantes.  Os pergaminhos, por exemplo, vamos desenrolando enquanto contamos a história, como se fosse um filme. Vamos criando possibilidades.

Como vocês escolhem as histórias?

Já trabalhamos com contos populares brasileiros, Drummond, Ricardo de Azevedo, Ana Maria Machado, Graciliano Ramos, Manoel de Barros e muitos outros.

Às vezes, criamos o projeto a partir de obras de autores que gostamos como a Ana Maria Machado. Outras vezes o projeto é feito sob pedidos, como o do Drummond.

O conto berbere Shtim Shlim foi uma ideia dos integrantes Edison Mego e Cadu Cinelli de contar uma história em vários espaços diferentes, em cinco galerias da Caixa Cultural. A gente já expunha nosso acervo lá desde 2003. Chamamos a diretora nascida em Gana e radicada em Londres, Inno Sorsy para dirigir. Fui para o Marrocos fazer pesquisa, trazer tecidos. Cadu foi para Benin com a Inno. É um conto sobre a saga de um aprendiz de magia lutando contra seu mestre.  Cada parte da história era contada em uma sala.

Experiência pioneira – Em 2014, fizemos algo que nunca antes tinha sido feito, que é a contação de história dentro da galeria de arte. Fundamos no Brasil essa possibilidade.

Vocês estão sempre inovando, como tem sido para trabalhar a narração de histórias no formato digital?

Por sermos muito artesanais, ter essa relação com a costura, o nosso conceito de infância é muito relacionado à memória. O que é memória? É tudo que podemos carregar conosco e que não tem a ver com o que é necessariamente publicitário. Por exemplo, a criança consegue perceber quando um material é ou não comprado numa loja. Ela consegue reconhecer a aura do que é artesanal, tem a ver com os retalhos da memória.

A gente faz esse resgate, é preciso reinventar o desenho nas pedras. Desde quando pintamos na pedra?  

As pessoas falam muito sobre o contador de histórias tradicional como sendo aquele que conta a história com voz, olhos, mãos, mas sem recursos externos. Mas podemos repensar isso, veja bem. Quando estudamos sobre desenvolvimento da linguagem de quando éramos ainda homo habilis, por exemplo, descobrimos que os desenhos nas cavernas, assim como a música, foram elementos fundamentais para o nascimento da fala, do discurso oral. Ou seja, desenhar nas cavernas alavancou, de certa forma, todo um processo de desenvolvimento do ser humano como ser narrativo. Essa é a maior prova de que somos seres narrativos desde sempre, e com os recursos natos ou externos, possíveis e impossíveis. O nosso conceito de tradicional não pode estar fechado em uma só uma ideia, ele é amplo e apresenta muitas manifestações. 

Agora com o meio digital, principalmente com a pandemia, enquanto grupo e artista, eu me vi forçado a me adaptar. O artista que sobrevive disso e precisa fazer a contação de histórias em meio digital, fazer com que as crianças dentro de casa se envolvam com uma história ainda artesanal, precisa saber qual o melhor sinal, o Zoom, o Streamyard, o Meet.

Esse quadradinho (tela onde aparecemos no computador) que a gente vê é um quadradinho de cinema. É uma outra linguagem. A gente tem que se adaptar, da mesma forma que se adaptou a tantos elementos, esse é mais um.

O jogo entre contos e tecnologia – Os espetáculos foram cancelados no início da pandemia, eu estava dirigindo uma apresentação da Daniela D’Andrea, A Arte de Governar a Si Mesmo, e decidimos então ver formas de continuar pesquisando.

Chamamos Anderson Barreto e Luciene Souza e escolhemos um conto para pesquisar a possibilidade de jogo das estruturas dos contos de tradição oral com as plataformas de videoconferência, mais especificamente o Zoom. Era a ferramenta para podermos dialogar com o mundo. Nasceu, assim, o projeto Cada Um No Seu Quadrado. E em março fizemos o primeiro vídeo.

Dois meses depois, veio “O Grande Contador de Histórias”, com as autoras Juliana Franklin e Ana Gibson. 

O terceiro vídeo do Coletivo, “Salma ou Saloma”, um conto palestino, estreamos no ECOH, com Gislayne Matos, Daniela D’Andrea e Aline Cântia. A gente brinca com essa forma de ser, de narrar.  Faço a brincadeira na hora, online, com recursos do aplicativo de videoconferência. A gente treina a história um tempão, definindo quem entra, quem sai, quem fica em cima, quem fica embaixo, quando estamos em quatro telas, quando um ocupa a tela cheia.

“Mesa Quadrada com o Coletivo Cada Um no Seu Quadrado”

Na narração de histórias, como você trabalhou a narrativa para que o artesanal fosse preservado no meio digital?

A criatividade sempre resolve todos os problemas. Uma grande vantagem do meio digital é a possibilidade de colocar um objeto bem próximo à câmera, por exemplo. Presencialmente não temos isso, normalmente estamos sentados em semicírculo e a criança vê o boneco na minha mão. Não existe esse zoom que permite essa brincadeira.

Essa coisa do zoom e do enquadramento são muito interessantes. A câmera permite essa brincadeira do quadro.  Podemos brincar aproximando coisas, posso levantar e brincar “quem quer um abraço”.

O storyboard do cinema auxilia neste processo. Você pode brincar com os planos, fazer o plano full, que permite ver a pessoa por inteiro, ir diminuindo para o plano americano (cabeça até joelho), depois se aproximar muito da câmera, ficando praticamente só olhos, nariz e boca (plano big close-up). Eu brinco também de aparecer e sumir da câmera.

Quem é o narrador de histórias, hoje?

Olha, eu sempre acho que a diferença entre um narrador de histórias e os outros, em quaisquer circunstancias, com ou sem internet, é que ele conhece muitas histórias, de várias origens.

Eu me dei conta que eu era narrador quando um amigo me trouxe um problema que ele estava vivendo e eu lembrei de uma história. Algo similar àquela acepção mais antiga do narrador conselheiro. Em muitas culturas o contador de histórias era conselheiro do rei, da comunidade, os próprios griots na África Ocidental, os mestres da  tradição Sufi, os tanaim da tradição judaica, os pajés das comunidades indígenas brasileiras, com histórias-ensinamentos.

O que te move para contar histórias?

Nossa, até me emociona quando você pergunta isso. Primeiro, eu acho que é a minha religião. Contando histórias eu tenho contato com Deus, com as Deusas, com a utopia por um mundo melhor. 

Crianças – Outra coisa que é muito forte para mim: criança. Criança me conecta com vontade de viver. Criança tem um deslumbramento com a vida, com o mundo, com as pequenas coisas, é de uma alegria de viver que nasce da própria semente da vida. O contato com ela me ilumina. Diante das crianças, eu me sinto cuidador e ao mesmo tempo me sinto cuidado. Elas me ensinam como ter esperança na vida, sempre, porque o mundo do adulto puxa você para baixo, para perder a alegria.

E a última coisa para contribuir nesta questão é uma história. Uma vez uma pessoa se aproximou e me disse: “Você nasceu para isso”. E foi muito forte. Eu acho que a gente sonha a vida inteira em escutar esta frase. Porque passamos a vida tentando encontrar nosso caminho.

Tem muitos desejos que envolvem essa projeção de felicidade, mas quando você escuta isso é muito forte. Parece que você se encaixa em você. Você se sente autorizado para cumprir seu papel social de transformar a sociedade em algo melhor.

Segunda vez que você fala sobre a narração de histórias como tendo um papel de ajudar a transformar o mundo.

Olha, a narração de histórias nos sensibiliza para o humano. De alguma forma ficamos mais próximos das nossas sombras e nossas luzes, e eu acho que isso facilita as pessoas a desatarem seus nós.