“Eu acho que nós temos, como contadores de histórias, que criar os nossos próprios templos e os nossos próprios encontros. Faz parte do cultivo da nossa dignidade, da nossa estima, como pessoas que trabalham com a palavra oral, que a gente possa criar esses espaços de diálogo, de escuta. Isso é realmente transformador para a sociedade que está habituada, principalmente nos últimos tempos, a não interagir mais escutando, rindo, se mobilizando.”
Warley Goulart aterrissou no 12º Encontro de Contadores de Histórias de Londrina com o espetáculo “Conta um causo, ganha um aplauso”, apresentando uma coletânea de contos, ilustrada por belíssimas imagens confeccionadas artesanalmente em tecido. Unir o “texto ao têxtil” é a característica marcante do grupo de narradores Os Tapetes Contadores de Histórias, fundado no Rio de Janeiro em 1988. Os cinco integrantes, costuram e narram histórias com tapetes, painéis, malas, aventais, roupas, caixas e livros de pano. Assim despertam o imaginário do público para as artes e a leitura. Além dos espetáculos, ministram oficinas e exposições do acervo.
Warley, que também é diretor do grupo, em performance solo na Vila Cultural Alma Brasil, encantou crianças e adultos. Para narrar “A Incapacidade de Ser Verdadeiro”, conto de Carlos Drummond de Andrade, usou um tapete costurado por ele próprio para mostrar as personagens em ação. Em seguida, transportou o público para a história de “Atchiqué”, uma versão andina da famosa narrativa de João e Maria, criando envolvimento com a ajuda de um livro de pano produzido pelas artesãs do projeto peruano “Manos que Cuentan”.
Para envolver a audiência na história “O Congo vem aí”, escrita por Sérgio Capparelli retratando a Congada de São Benedito, Warley trouxe as ilustrações originais do livro, que foram bordadas em tecido. O narrador mostrou ainda uma das suas mais recentes criações, tapetes que revelam imagens quando posicionados frente à luz. Arte que tornou mágico acompanhar um conto sobre como animais da floresta escaparam de uma inundação. História recolhida no Ceará, na terra indígena Tremembé, e também registrada em livro pelo autor, contador e violeiro Paulo Freire.
Além de contador de histórias, Warley é músico e artista visual formado pela UniRio com especialização em Literatura Infanto-Juvenil pela Universidade Federal Fluminense. Veja o que mais ele nos contou.
Entrevista por Christina Mattos. Foto: Acervo Os Tapetes Contadores
– Qual a relação entre os contos escolhidos para o espetáculo “Conta um causo, ganha um aplauso”?
Warley Goulart – São narrativas que falam sobre essa fronteira tênue entre o contador de histórias e o mentiroso. A gente chega a perguntar para as crianças qual é a diferença. Às vezes elas dizem que o mentiroso é mau e o contador de histórias é bom, mas a gente realmente nunca sabe qual a diferença, porque o contador de histórias é um mentiroso de carteirinha. A gente aprende a lidar com a palavra oral da mesma forma como a gente tem fé nas mentiras. Não atrelada com a ideia de corrupção, de desonestidade, mas sim com a ideia de poesia e criação artística.
– Por que Os Tapetes Contadores de Histórias se tornou um grupo de sucesso?
Warley Goulart – Nós estamos comemorando 25 anos dedicados à arte de contar histórias e à costura de cenários para narrativas orais. Olhando para trás, o que percebemos é que realmente transformamos a arte de contar histórias para crianças no Brasil. Hoje em dia, vemos frequentemente contadores de histórias utilizando bonecos de pano, elementos têxteis ou até mesmo cenários para enriquecer suas narrativas. Isso se deve ao nosso legado, a essa ideia que inauguramos no Brasil em 1998. Fundamos este projeto que une texto com o têxtil e contribuímos significativamente para a profissionalização do contador de histórias. Representamos o Brasil em mais de 16 países e ocupamos espaços que os contadores não tinham acesso anteriormente. Chegamos a trabalhar em hospitais em parceria com os Doutores da Alegria. Há 20 anos, também ocupamos galerias de arte, como é o caso agora na Caixa Cultural Curitiba, com o acervo que costuramos ao longo destes 25 anos. Fomos o primeiro grupo de contadores de histórias a ocupar uma galeria de arte não apenas como mediadores ou narradores de obras de artistas visuais, mas com nossas próprias obras, criadas para contar histórias. Além disso, o entendimento dos centros culturais, teatros e bibliotecas sobre a arte de contar de histórias também se sedimentou em contato com o nosso projeto, que inovou e transformou a cena. Hoje, muitos contadores utilizam bonecos de pano, e as editoras frequentemente encomendam mascotes de pano que correspondem aos protagonistas de livros infantis. Isso se deve diretamente à ideia que introduzimos no Brasil. Antes, isso não era comum. Acreditamos que a única boneca de pano conhecida antes de nós era a Emília, de Lobato (risos). Portanto, trouxemos essa inovação, e continuamos nossa pesquisa nesse campo.
– O que você pode dizer pra ajudar quem está começando na arte da narração artística?
Warley Goulart – Primeiro, sugiro que pesquisem, fazendo buscas na internet, pedindo indicações de amigos, quem são os grandes mestres e quem têm se dedicado à arte de contar histórias na prática há muito tempo. Regina Machado, uma renomada contadora de histórias, menciona em seu livro “Acordais – Fundamentos Teórico-poéticos da Arte de Contar Histórias”: a formação de um contador de histórias é um processo que demanda tempo. Portanto, é contando que se conta. O contato, o convívio com esses mestres experientes o lidar com a palavra oral, com diversos tipos de público, vai trazer muitas ferramentas que ele poderá utilizar em qualquer contexto, seja pedagógico, educativo, recreativo, cultural, social, mítico ou terapêutico. Portanto, é muito importante que as pessoas não busquem apenas dicas nas redes sociais, mas sim que se desenvolvam por meio da interação com esses mestres. Existem muitos festivais de contadores de histórias que proporcionam a oportunidade de estar próximo de mestres na arte de narrar, como é o caso do ECOH. É uma chance única de aprender com aqueles que têm uma vasta experiência na arte de contar histórias e na relação da palavra oral com o público.
– O que te deixa mais feliz quando conta histórias?
Warley Goulart – O que me deixa mais feliz enquanto eu conto histórias é o brilho nos olhos das crianças, não é mesmo? Em particular, é quando desenvolvemos um trabalho para o público infantil, é esse estado de maravilhamento diante das palavras, das narrativas, das formas têxteis que costuramos, das expressões que apresentamos, dos sustos que a gente dá e das músicas que cantamos, assim como das estruturas dos contos de tradição oral. Portanto, esse brilho nos olhos das crianças, esse maravilhamento, é uma espécie de bônus espiritual que recebemos por sermos contadores de histórias.
– O que significa para você estar aqui no ECOH?
Warley Goulart – Eu acho que nós temos, como contadores de histórias, que criar os nossos próprios templos e os nossos próprios encontros. Faz parte do cultivo da nossa dignidade, da nossa estima, como pessoas que trabalham com a palavra oral, que a gente posso criar esses espaços de diálogo, de escuta. Isso realmente é transformador para a sociedade. A sociedade está habituada, principalmente nos últimos tempos, a não interagir mais escutando, rindo, se mobilizando. É muito importante que esse um evento como o ECOH, que traz pessoas de grande importância nessa área e promove a aproximação dos mestres com os aprendizes. Eu acho que o convívio é a coisa mais importante do mundo em qualquer profissão. E eu não falo “mestre” só no sentido acadêmico, mas também o “mestre artesanal”, como Benjamin coloca. Ou seja, é diante de uma pessoa que trabalha com bordado, com cerâmica, um grande mestre da cerâmica, que vai te orientar como lidar com aquele material, com barro, com as formas de uma tal maneira que isso vai lhe conceder caminhos de liberdade, caminhos de criação. E é a mesma coisa que acontece com a palavra, pra mim, palavra é bordado, é cerâmica.
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