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A tradição oral ganha a universidade

A academia vem legitimando o saber da tradição oral como fonte de conhecimento. “É um movimento nacional, a arte brasileira, a literatura brasileira, as nossas oralidades, os nossos saberes tradicionais estão entrando pela porta da frente das universidades”, disse a pesquisadora e contadora de histórias, Luciene Souza, da Universidade Estadual de Feira de Santana, no sertão da Bahia, na  Roda de Conversa: “A narração de histórias na academia”. 

Luciene e os pesquisadores da tradição oral e contadores de histórias Keu Apoema, da Universidade Federal do Sul da Bahia e Toni Edson, da Universidade Federal de Alagoas, com mediação do pesquisador Frederico Fernandes, da Universidade Estadual de Londrina, conversaram sobre o tema.

No vídeo você encontra a trajetória de cada um deles, suas experiências em Burkina Faso e no Timor Leste, nos casos de Keu Apoema e Toni Edson, e toda a conversa sobre esse processo de reconhecimento do saber oral no ambiente acadêmico, a transformação da universidade para acolher esse saber, os muitos avanços ainda necessários.

Aqui, alguns trechos dessa Roda inspiradora.

“O Brasil precisa conhecer seus contos tradicionais para saber de fato quem ele é e para saber se cuidar um pouco melhor também. Quando a gente conhece melhor quem a gente é, a gente aprende a escolher presidente, a cuidar do país, da natureza.” (Luciene Souza)

Frederico Garcia Fernandes – Como é a tradição oral em universidades africanas e a diferença em relação às universidades brasileiras?

Keu Apoema – Em Burquina Faso foi uma experiência no chão, entre contadores de histórias, lá não chegou a ser um intercâmbio universitário. Foi um trabalho de pesquisa, que depois eu incorporei no meu mestrado. Em Timor Leste, fui para a Universidade Nacional de Lorosa’e, e no departamento de Língua Portuguesa fizemos um grupo de contação de histórias chamado Haktuir Aikananoik, onde trabalhamos os estudos teóricos. Esse grupo foi iniciado em 2014 e tenho a felicidade de acompanhá-lo, à distância, até hoje.  E é muito diferente da realidade brasileira. No Timor a tradição oral é muito viva, têm ritos que ainda se sustentam pela oralidade, tem a figura do mestre da palavra, aquele que conhece os ritos, que é o narrador de histórias, o genealogista. É muito diferente do Brasil, embora tenhamos figuras importantes semelhantes aqui, como mães de santo, pajés, mas é um cenário muito diferente.

Frederico Garcia Fernandes – Como é trazer o sertão para dentro da universidade, tem alguma resistência?

Luciene Souza – Não tem resistência nenhuma, é uma universidade que olha muito para si e pensa muito na produção de conhecimento por meio da oralidade. Faço hoje Ensino, Pesquisa e Extensão com a formação de contadores de histórias. Tenho uma disciplina optativa que serve aos currículos das licenciaturas, mas toda vez que um bacharel aparece, ele entra na turma e pode cursar uma disciplina de 60 horas com foco na formação do narrador que vai pra performance, tem a extensão que é o observatório de contador de histórias, e tem a pesquisa com o projeto Cacimba de Histórias. Então, é uma universidade que está aberta à oralidade.

Em uma parceria com a Keu, criamos uma pesquisa de recolha de histórias muito parecido com que vem sendo feito em Alagoinhas, com um recorte em vários outros pontos da Bahia, para isso damos as mãos a várias outras universidades, e nesse coletivo mapeamos vários pontos da Bahia com estudantes da iniciação cientifica e do mestrado.

Sou uma pesquisadora mas também uma contadora de histórias, e os estudos da performance sempre me interessaram. Mas há dois anos, olhamos, também a recolha de contos, por isso nasceu o projeto Cacimba de Histórias que é institucional e tem como foco a recolha dos contos no interior na Bahia.

Toni (Edson) foi nosso parceiro na gestão desse projeto, futuramente queremos levá-lo para outros pontos do país porque o Brasil precisa conhecer seus contos tradicionais para saber de fato quem ele é e para saber se cuidar um pouco melhor também. Quando a gente conhece melhor quem a gente é, a gente aprende a escolher presidente, a cuidar do país, da natureza.

Keu  Apoema – A história das universidades não é a história de um ambiente acolhedor para o tema da oralidade, das tradições populares, mas isso tem mudado muito nas últimas duas décadas. É importante a gente lembrar dos estudos culturais para essa movimentação, para que surgissem pessoas dentro das universidades que começaram a abrir portas pra nós. Vimos o surgimento de vários intelectuais, professores que começaram a abrir portas, nas últimas duas décadas para que a gente tivesse nesse lugar agora de mais conforto.

“Precisamos de um caminho de revalorização da oralidade, através do olho no olho, da narrativa de histórias.” (Toni Edson)

Frederico Garcia Fernandes – A oralidade no século XX foi deslegitimada e dissociada da verdade, inclusive. Se era verdadeiro é porque estava escrito. A escrita era uma comprovação do que foi dito. Até hoje adotamos estas práticas grafocentricas, incorporadas no nosso dia a dia. O que é interessante nesse seu trabalho é que me parece que você foi fazendo um processo de descoberta de que escrita e oralidade não são dissociadas. Como você vê ao longo do seu percurso essa relação?

Toni Edson – É isso. A questão é pensar que as civilizações de tradição oral, têm a oralidade como uma opção confiável pra transmissão de conhecimentos e isso a gente vê no Burkina Faso, em muitos países africanos e também no Brasil, principalmente no interior. As grandes capitais têm perdido um pouco o foco em escutar (…)  (focados) apenas em entender o que há ali da verdade.

Sotigui Kouayté* diz que há três verdades: a sua, a minha, e a verdade, e nenhuma das três são verdadeiras. Ele diz um pouco mais, diz que antes as pessoas davam sua palavra, sua palavra de honra e isso tinha um valor inestimável, hoje as pessoas só acreditam umas nas outras se for assinado um papel.

Existe um peso muito grande dado à escrita, mas precisamos de um caminho de revalorização da oralidade, através do olho no olho, da narrativa de histórias.

*mestre da tradição oral de Burkina Faso

“O encontro começou com a gente pedindo a benção para nossos ancestrais. Essa era uma cena impensável dentro da universidade há 20 anos” (Keu Apoema)

Frederico Garcia Fernandes – Nesse trabalho de pesquisa que a gente faz –  você fez em Burkina Faso, no Timor Leste, eu também fiz várias investigações no Pantanal Sul Matogrossense – com narradores, aqui em Londrina com rappers, trazemos muito deles para nós, absorvemos muito desse conhecimento, dessa acolhida que eles dão pra nós, porque pra eles contarem histórias pra nós têm que ter uma relação de confiança sobretudo. E o que a gente devolve pra eles. Fica esse sentimento de débito. Como você vê isso, o retorno que damos às comunidades que a gente investiga?

Keu Apoema – Tenho me feito essa pergunta e ainda não encontro respostas suficientes. Estabeleço sempre o compromisso de devolver esse texto que recolho de algum modo. Mas, assumindo minha responsabilidade, acho que nossos esforços ainda não são suficientes, no sentido de contrapartida para essas pessoas. Precisamos criar muito mais espaços dentro da nossa universidade para acolher esses mestres da tradição, e temos discutido isso.

Neste momento estamos envolvidos em um grande encontro sobre pesquisa e narração de histórias, e uma de nossas preocupações é um espaço dentro desse evento para esses mestres, porque são pessoas que constituem pesquisa a partir de um lugar diferente do nosso, de um lugar da experiência, do corpo, da escuta. Acho que temos que nos responsabilizar com eles, não podem ser só fontes das nossas pesquisas, eles têm que ser protagonistas, temos que trazê-los para o centro das nossas propostas de divulgação cientifica.

Frederico Garcia Fernandes – Começa a haver na universidade uma revolução de saber. Vemos alguns cursos, por exemplo, de tradições populares, inclusive na UNB, que incorporam mestres, conhecimentos da tradição para dentro da formação do aluno. A universidade ganha muito a partir do momento em que ela começa a ouvir essas pessoas e trazê-las como grandes formadoras.

Keu  Apoema – A UFMG tem um encontro de saberes que traz os mestres da tradição oral que é uma coisa linda. Na UFSB, minha universidade a gente também tem essa política, mas ela não é muito fácil de ser implementada, pois é importante lembrar que precisamos valorizar esses mestres em todos os sentidos, inclusive financeiramente. Estamos tentando regulamentar isso, mas ainda é muito burocrático.

Mas a intenção e alguns regulamentos já existem, nesse sentido há um avanço muito importante, inclusive no sentido de quebrar preconceitos e de compreender a universidade como um espaço que pode acolher várias epistemologias. Se pararmos para pensar, um dos maiores pensadores contemporâneos, nomeado como tal, é Ailton Krenak. Então a universidade é hoje um espaço muito mais interessante para acolher essas diferenças.

Outra coisa é que aqui no sul da Bahia tenho trabalhado muito com colegas pesquisadores das religiões de matrizes africanas. Fazemos muitos encontros. E um deles foi feito com mães de santo, pajés, lideranças indígenas e uma pessoa do Timor Leste, ou seja, éramos nós escutando o que estes mestres têm pra falar. Foi muito interessante porque o encontro começou com a gente pedindo a benção para nossos ancestrais. Essa era uma cena impensável dentro da universidade há 20 anos.

“Não estamos no chão, estamos na luta, estamos produzindo a despeito de tudo.” (Luciene Souza)

Frederico Garcia Fernandes – Mas estamos vivendo também um retrocesso na Cultura e na Educação. Isso está afetando sua pesquisa, a mim afeta demasiado, com cortes de recursos inclusive E como você enfrenta essa situação?

Keu Apoema  – Temos enfrentado, sim.  Eu falo isso em sala de aula, inclusive, não podemos deixar de falar desse cenário político e de como ele impacta as nossas possibilidades de trabalho, de atuação. É um cenário de muito sofrimento e desafios, mas por outro lado eu me apego muito à comunidade, ou seja, esse conjunto de ativistas, pesquisadores, estudantes, que se constituíram, nos últimos 30 anos.  É uma comunidade muito potente.

É um momento de disputas e estamos na luta. Estamos sendo solapados pelo corte de recursos, pelo discurso fascista, mas a gente tem uma comunidade na qual a gente precisa confiar. Então, quando eu estou em encontros com pesquisadores tão potentes, como esse do ECOH, e eu tenho participado de vários, são espaços que criamos, quando não nos dão, para continuarmos a falar de temas étnicos-raciais, povos originários, isso para mim é de muita potência. Precisamos confiar nessa comunidade e na caminhada que a gente já construiu, em todos aqueles que vieram antes de nós e enfrentaram situações muito mais difíceis.

Frederico Garcia Fernandes – Luciene, como sertanejo vê tudo isso que estamos vivendo. Qual lição ele pode nos dar?

Luciene Souza – Não é novidade que somos acima de tudo fortes, e que tudo é cíclico. O sertanejo aprende com o tempo, a narrativa do tempo diz a ele, que tudo é cíclico, o que hoje nos afeta de forma muito dura, amanhã vai passar. Então penso que o sertanejo compreende o que está acontecendo, mas nunca foi fácil pra nós, nunca foi simples, o Nordeste e o Norte, de modo geral, sempre foram atingidos de uma forma muito dura, mas a gente sabe que a despeito de tudo a gente vence. Tem muitos direitos conquistados, podem até tentar, mas não vamos perder direitos, há um grito, há uma resistência. Não estamos no chão, estamos na luta, estamos produzindo a despeito de tudo.