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“Pisoteamos a nossa oralidade e consideramos isso normal”

Entrevista e texto por Erika Pelegrino//Imagem capturada por Valéria Félix

Toni Edson, sergipano que vive em Maceió, tem uma trajetória ligada à palavra e à escuta desde os 11 anos, quando começou a brincar com o teatro. Trinta anos depois, ele é ator, narrador de histórias, dramaturgo, compositor, professor de universidade pública, atua com teatro de rua, perna-de-pau, técnicas circenses. E diz que está apenas no início de uma busca de saber, que é o que o motiva a contar histórias.

Nesse caminho, é guiado pelos mestres da cultura mandinga Amadou Hampatê Bâ, Sotigui Kouyaté, Hassane Kouyaté, Toumani Kouyaté, François Moïse Bamba, da África Ocidental.  Cultura sobre a qual se debruçou a partir de 2000 para sua tese de doutorado “Narrativas na Rua – Da inspiração djeli às rodas de histórias em Maceió”, realizado entre 2012 e 2016.

Foi à Burkina Faso, no oeste da África Ocidental, vivenciar a cultura mandinga e conviver com djelis, que são os guardiães da palavra, das histórias de todas as gerações, os conselheiros. Além dos mestres djeliw, tornou-se amigo de um ferreiro que também conta histórias e é seu mestre, Francois Moïse Bamba, que também participa desta edição do ECOH. 

No ECOH, Toni ministrou a oficina de formação aos professores e professoras do Palavras Andantes, “A tradição oral sob o viés da cultura mandinga, África Ocidental”.  Ele também participou da roda de conversa “A narração de histórias na Academia” e fex a live “Bichos, Canto e Encantos”.

Nesta entrevista ao site do ECOH, Toni Edson fala sobre cultura mandinga, oralidade, escuta, palavra, vida.

Você diz que as relações na cultura mandinga são baseadas na oralidade, não por conta de uma inabilidade com a escrita, mas por escolha. Essa escolha torna as relações naquela cultura diferentes das relações estabelecidas no Brasil, em quais aspectos?

“A oralidade não é uma inabilidade com a escrita” são palavras de Amadou Hampatê Bá, ele fala isso em relação a muitos povos. A escrita é antiga e surgiu na África, o que foi possível com o avanço Europeu foi o surgimento da imprensa e a reprodutibilidade técnica, que permite essa reprodução em massa, como explica Walter Benjamin.

Antes, algumas pessoas iniciadas escreviam, isso em muitas civilizações, outras não escreviam e não liam, mas com certeza mesmo que dominassem esse registro prefeririam manter as relações pela oralidade, porque há uma crença de que além de ser mais verdadeira, ela chega mais longe e toca mais profundamente.

O Brasil nunca escolheu ser um país do grafismo. Nas grandes cidades a gente tem uma desvalorização do que é oral. Mas no interior a oralidade é muito forte. A gente mantém ainda muitas relações próximas com a cultura mandinga. Os processos de iniciação que existem lá, existem aqui no aspecto religioso de matrizes africanas, na pajelança. Não podemos desconsiderar toda a gama de tradição oral que os povos originários conseguem propagar.

Lélia Gonzalez diz que a gente não o fala português, mas o pretoguês. Eu digo que a gente fala o tupipretoguês. Temos muitas palavras indígenas e dos povos africanos na nossa língua. Mesmo assim a gente pisoteia a nossa oralidade e considera isso normal. A gente acha que o causo que o tio e a tia contam no interior é uma besteira.

Alguns dos meus mestres não sabem ler nem escrever. Só que são exímios contadores de histórias, com uma memória prodigiosa. No Cheganças: reinventando a roda com histórias diamantinas, projeto pelo qual fomos para o interior da Bahia, a gente encontrou contadores de histórias que são analfabetos funcionais, mas um deles, por exemplo, o Zelito, lembrava histórias de cordel inteiras com todas as rimas, porque ele escutava desde criança.

Então, o Brasil não está tão distante (da cultura mandinga), mas tanto nela quanto aqui há desvalorização da oralidade. E uma das coisas que eu faço com o meu trabalho é revalorizar a oralidade. Não é resgatar, porque a oralidade não está morta, está muito viva, a questão é revalorizar, para que a gente passe a confiar mais naquilo que é dito, naquilo que é falado, sem essa supervalorização da escrita.

É possível falar que as relações que são baseadas na oralidade, são mais afetivas, verdadeiras, do que as relações baseadas na escrita? É possível fazer essa relação?

Eu questiono essa parte de ser mais verdadeira. Existem várias verdades, quando um poeta escreve um poema que toca milhares de pessoas, ele também tem uma relação muito verdadeira, muito próxima. As letras de Gonzaguinha por exemplo – ou de inúmeros compositores e poetas que têm sua condução através da escrita – na minha opinião conseguem tocar profundamente, mas essas pessoas também beberam na fonte oral.

Acho que uma das coisas é não esquecer os cantos que a gente canta quando é criança, não esquecer nossas referências. Tanto a escrita quanto a oralidade podem caminhar juntas.

Sotigui Kouayté fala que antes a gente dava nossa palavra, algumas vezes a gente dava nossa palavra de honra. Hoje se você não assina um papel, o que você fala não tem valor.

É uma questão de as pessoas tentarem viver seu próprio discurso, tentarem escutar o que elas falam e de não haver uma supervalorização da escrita, vilipendiando a oralidade.

Para ser narrador de histórias é preciso ser escutador de histórias. Queria que você falasse sobre a importância da escuta. O que faz de nós alguém que tem uma boa escuta?

Sobre a questão da escuta, falo que Hassane diz que a escuta não é com os ouvidos, mas com todos os sentidos e talvez até com todos os poros. É uma abertura a um conhecimento novo que só é dado à medida que estamos preparados para receber. Não é porque eu disse ou porque a pessoa fez a oficina que eu dei que aquele conhecimento vai entrar, mas se ela fez com a escuta aberta, em algum momento da vida em que perceba que precisa daquele conhecimento, ele vai brotar de novo.

Para ser contador é preciso ser escutador, isso eu escutei de Toumani Kouayté. Na cultura mandinga, os djélis (aqueles que nascem sabendo que vão contar histórias) só alcançam o mais alto grau e são reconhecidos na comunidade como contadores de histórias, depois dos 42 anos. Até lá é importantíssimo praticar a escuta para adquirir essa apreensão de conhecimento. Um djéli consegue resguardar a tradição de 30, 40 gerações anteriores a deles, é muita coisa, é um treinamento sensível ao extremo do escutar, do entender.

Eu dou aula em universidade desde 2004. Quando começo uma turma nova de 40 estudantes, no dia seguinte eu já sei o nome de todo mundo. No momento em que repito o nome de cada um, no primeiro dia de aula, é importante para mim estar aberto. Isso é só a ponta do iceberg para abrir a escuta. Hoje eu consigo fazer isso com histórias, se eu estou presente, conectado, escutando, eu consigo lembrar uma história, em detalhes, escutando uma só vez.

Então, o necessário para a escuta é estar presente, ter a tranquilidade de escutar sem querer emitir opinião, julgar. E esse estar presente não é fácil, é prática. É preciso estar presente quando se conta e quando se escuta. E, como dizia François Moise Bamba, quem escuta é muito mais importante do quem fala. O meu pensamento é só meu e talvez ele possa mudar minha vida, mas o que falo é de quem ouve e pode transformar outras vidas, por isso a importância de quem escuta sem pressa, sem querer julgar, sem querer falar.

Qual a relação entre escuta, memória e transmissão, na narração de histórias?

Tem uma frase do François Moise Bamba que está aqui na minha parede, que fala sobre isso: “Tudo parte da escuta, a partir da escuta você consegue aprimorar sua memória.”

Tudo parte da escuta, quanto melhor você escuta, mais a sua memória se expande, quanto mais sua memória se expande, mais conhecimento você tem, quanto maior seu conhecimento, mais você pode transmitir. Amadou Hampatê Bá fala que na África, normalmente, os grandes anciões tradicionalistas não são especialistas, são generalistas.  Eles aprendem tudo que for possível aprender.

Na minha trajetória, por exemplo, eu trabalho com teatro de rua, contação de histórias, sou dramaturgo, já trabalhei muito com teatro de bonecos, dou aula de perna-de-pau, algumas técnicas circenses.  Minha pesquisa está mais focada na contação de histórias e no teatro de rua, mas sei fazer bem outras coisas. Aprendi cedo com Amadou Hampatê Bá, com a Tradição Viva, essa importância de a gente ampliar o leque, para poder fazer escolhas. Quanto mais conhecer no sentido generalista, maior a possibilidade de que a gente possa fazer uma transmissão valorosa.

Você diz na oficina, que um djéli após os 42 anos é reconhecido pela comunidade como um contador de histórias, como alguém capaz de começar e de parar uma guerra. Gostaria que falasse sobre esse poder da oralidade, da narração de histórias, de começar e de parar uma guerra.

Esta frase é sobre uma realidade especifica. Pensando na África pré-colonial, um djéli realmente conseguia começar e parar uma guerra, da mesma forma que iniciava um casamento, falando da família do noivo para a noiva, e da família da noiva para o noivo.

Mas ao mesmo tempo quando Toumani Kouayeté fala: “Uma gota de palavra pode cavar um buraco muito maior do que 100 mil litros de água”; Hassane Kouayté fala: “A palavra não tem osso mas é capaz de quebrar ossos” e quando Sotigui Kouayté fala:  “Se a gente se olha no olho a gente percebe que aquilo que nos aproxima é maior do que aquilo que nos distancia”, temos aí os caminhos desse poder e dessa potência.

Vou contar um conto.

Havia um rei chamado Obatalá. Esse rei admirava há muito a inteligência e a perspicácia de um jovem chamado Orunmilá. Ele queria entregar para Orunmilá o segredo das pessoas, o segredo de todo o mundo. Acontece que Orunmilá era muito jovem para uma missão tão importante, então Obatalá resolve testar Orunmilá Ele pediu a Orunmilá que fizesse a melhor comida que ele pudesse comer.

Orunmilá foi até sua casa e lhe preparou língua de touro.

O rei comeu, se deliciou e perguntou: “Por que língua de touro é a melhor comida?”

Orunmilá respondeu: com a língua se consegue axé, com a língua se fortalece as amizades, com a língua se enaltece as grandes obras, com o uso da língua os grandes chegam à vitória.

Depois de um tempo o rei Obatalá resolveu testar de novo Orunmilá e pediu que ele fizesse a pior comida que pudesse ser feita.

Orunmilá foi até sua casa e preparou para o rei língua de touro.

“E o rei perguntou, mas como a melhor comida pode ser a pior comida?”

Orunmilá respondeu, com a língua os homens se perdem e se vendem, com a língua são proferidas as calúnias, com a língua se destrói as reputações, com o uso da língua são cometidas as maiores vilezas do ser humano.

Obatalá surpreso resolve entregar então para Orunmilá o governo dos segredos do mundo, o governo dos segredos das pessoas.

Essa história fala um pouco sobre sua pergunta. É um pouco esse caminho, a língua consegue enaltecer e ferir de uma forma violenta, e assim começar ou parar uma guerra entre etnias, entre comunidades, entre bairros, entre pessoas, começar e parar uma guerra interior.

O que a gente deixa sair pela nossa boca tem tudo a ver com as guerras em várias instâncias.

Qual a importância de se olhar no olho na narração de histórias e nas relações na cultura mandinga?

Essa é uma das questões cruciais na nossa vivência. Sotigui diz que quando a gente olha no olho a gente vê a pessoa da pessoa. Normalmente, contando histórias, eu gosto de uma plateia próxima, às vezes eu prefiro não ocupar o palco, prefiro ir pra perto das pessoas, respirando com elas, nesse olho no olho.

Em uma apresentação se a gente passa os olhos pelas pessoas, a gente não vê. Se fixarmos os olhos em uma pessoa e olharmos profundamente para contar a histórias, se tiver 300 pessoas na roda, trazemos as 300 naquela ligação.  Claro, que não vamos ficar a apresentação inteira olhando no olho de apenas uma pessoa, vamos mudando, mas sempre parando e focando nos olhos de alguém. Mudando o foco a gente vai conseguindo contemplar essa plateia muito mais, e conseguimos fazer as pessoas se sentirem acolhidas e importantes. Se a gente entende que elas são mais importantes porque estão escutando, quando a gente olha no olho delas a gente está acolhendo, está literalmente dando um abraço e realçando essa importância.

Nas palavras de Sotigui, se a gente olhasse mais nos olhos das pessoas, muito da rejeição e do preconceito seriam dirimidos, porque a gente veria que aquilo que nos aproxima é muito maior do que aquilo que nos distancia.

É fazendo eco às palavras dele que falo da importância de se abrir para conhecer, para olhar e para escutar e, assim, perceber que são vazias muitas das relações de violência, de preconceito e de rejeição.

O que te move para contar histórias?

O que me move para contar histórias é uma busca pelo saber, que estou apenas iniciando, não tenho nem 42 anos. É essa questão mesmo de tentar convencer mais pessoas a ouvir histórias, para conhecer-me, conhecê-las e conhecer um pouco mais, no sentido generalista, esse mundo que nos cerca.

(Contar e escutar histórias) É um momento, nesse tempo acelerado, para poder se perceber, e como você mesma disse nos tornarmos mais humanos, nos aproximarmo-nos daquilo que nos funda que é a própria palavra.

Sotigui fala que a viagem mais longa que podemos fazer é da nossa cabeça até o nosso coração, então é por isso que eu conto histórias, é para tentar fazer com que essa viagem, que está no seu período inicial, seja a mais profícua, a mais valorosa e cuidadosa possível.

Gostou? Quer assistir Toni Edson no ECOH?

É só clicar nas imagens:

Oficina: A tradição oral sob o viés da Cultura Mandinga / África Ocidental

Narração de histórias: Bichos, cantos e encantos

Roda de conversa: “A narração de histórias na academia”