Entrevista por Christina Mattos. Fotos cedidas pelo Canastra Real.
Para a abertura do 11º ECOH, a escolha foi o baile-espetáculo de carnaval Folia Crianceira, o baile do cancioneiro brincante pra pipocar, do grupo baiano Canastra Real.
Conversamos com o professor artista, brincante profissional, José Rêgo, o Pinduka, diretor musical, vocalista e músico do grupo.
Pinduka é mestre em Educação pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Educação, da Universidade Federal da Bahia e doutorando em Artes Cênicas pela Escola de Teatro, também na UFBA.
Pesquisador das culturas infantis em suas tradições orais, cria a partir delas os espetáculos e saraus do Canastra Real: contos EM cantos, uma proposta estético-educativa.
Na entrevista ele conta como se tornou um contador cantador, fala sobre infância, o poder das histórias e a trajetória do grupo fundado há 8 anos.
O que te fez virar um professor, pesquisador, cantador e contador de histórias? Isso tem origem no jeito que viveu a sua infância?
José Rêgo (Pinduka) – Se entendermos a infância como tempo de privilegiada atenção aos fluxos da vida e ao que emerge a cada instante, diria que sim. Não planejei nenhuma das coisas que faço hoje em dia, tentei apenas ficar atento ao lance de dados do que ia rolando no caminho, aprendendo com as veredas trilhadas e compartilhando com companheiros de itinerância alguns dos achados feitos com maior intimidade. Algo na perspectiva das memórias inventadas do Manoel de Barros, como naqueles versos que dizem
“… o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade / a gente só descobre isso de pois de grande / A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas / Há de ser como acontece com o amor / Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores que as outras pedras do mundo / justo pelo motivo da
intimidade…”
Então diria, ainda com Manoel de Barros, que: “… sou hoje um caçador de achadouros de infância / vou meio dementado / enxada às costas / a cavar no meu quintal / vestígios dos meninos que fomos”. E isso não na perspectiva de uma saudade da infância, mas de sua atualização e invenção.
O que te preocupa em relação ao modo de vida das crianças de hoje?
Que lhe seja dificultado o acesso à dimensão milenar e planetária que chamamos infância, afinal ela precisa ser vivida pra ser confirmada. Em nosso espetáculo “Toada Crianceira: cancioneiro brincante da infância” falamos disso explicitamente: […] ser criança é natural, como o mar (nós fomos, elas
são e outras serão) / Mas viver a infância […] é cultural, como amar / Algo que se pode aprender e ensinar / É tradição e usina de invenção / Herança e esperança.
Quais os principais benefícios que a gente conquista ao manter viva a narrativa oral na comunidade, na escola e em casa?
Mesmo para falar dos principais, tomaria muito tempo do leitor rsrs. Vou me ater a um que no momento me parece espacialmente caro: a criação de vínculos. As narrativas orais são próprias das culturas populares e, diferente da cultura letrada, centrada na figura do autor, no uso da leitura visual e individual, têm por base de comunicação a percepção auditiva da mensagem, sendo produções coletivas que suscitam experiências coletivas. Dizendo de outro jeito, na abordagem da história literária, o eixo de sentido se dá pela visão, que isola, separa, disseca, o efeito é de introspecção e de reflexão analítica do indivíduo. No contar histórias o eixo do sentido se dá no fluxo palavra sonora/audição, o som incorpora e unifica, o efeito é de unidade da experiência compartilhada e vivida coletivamente. Há neste caso a criação de um vínculo, dessa ligação fina (um sopro de vida rsrsrs) entre quem conta e quem escuta, com a palavra valendo por sua performatividade.
Como se formou o Canastra Real? O que você destaca na trajetória que já dura 8 anos?
Quando me referi aos “achadouros de infância” manoelinos, de algum jeito contei a história do grupo Canastra Real. Mas para sintetizar isso numa cena, vejamos: eu vinha de um lado da estrada com uma ruma de gravetos, sementes, folhas secas e pedrinhas de alegria,
Luciene vinha do outro com as mãos em concha, cheia de assuntos encantados. Quando nos encontramos (com o elo tecido pela Professora Lica Araújo, minha companheira), reconhecemos afinidades nas coisas que trazíamos, colocando-as numa pequena canastra, já vislumbrando a
possibilidade de arriarmos nossa brincância juntos em aulas-espetáculo como artistas docentes.
Algum tempo depois, entendemos que talvez nossos achados poderiam tomar dimensão espetacular, convidamos pessoas amigas da música, da palavra poética e da visualidade (salve, Fernanda Leturiondo!) e fomos correr trecho levando nossos contos e cantos pra todo canto, inicialmente pelos palcos da cidade, depois por outras paragens, pra nunca mais querer parar.
O que vocês estão percebendo de mais interessante nesse momento em que as apresentações voltam a ser presenciais?
Fazendo recurso à ideia de um espetáculo como alimento (necessidade vital), acho que depois de dois anos e tanto de isolamento social por conta da pandemia, essa retomada das apresentações
presenciais fez intensificar o saboreio de cada apresentação, como se a gente ampliasse a potência da degustação, sentisse o sabor mais demoradamente.
Conta um pouco sobre o espetáculo Folia Crianceira. Como foi construído? É pra ir brincar com fantasia e tudo?
Bem, somos um grupo da Bahia, estado que tem o carnaval como uma das principais festas populares porque encruzilha um conjunto de saberes e fazeres que dizem muito sobre a baianidade. Não poderíamos nos furtar de tematizar essa festa no sentido da infância e de delinear um repertório cancional que articulasse memória, percepção e imaginação crianceira, considerando a riqueza da tradição oral, mas também do cancioneiro. Notamos que as crianças por aqui brincam o carnaval muito a partir do que é ofertado pela indústria do entretenimento massivo que, via de regra, não leva em conta o desenvolvimento infantil (psicomotor, afetivo, social, moral), entregando às crianças gestos prontos a serem mimetizados, não raro, utilizando um universo vocabular de baixo potencial imaginativo e algo bastante restrito musicalmente, se consideramos a diversidade ritmomelódica de nossa música popular. Aos poucos, esse entendimento crítico foi virando vontade de
carnavalizar, sem obediência aos modos e modas infladas pelos cifrões, de pensar uma ação festiva como movimentação corpórea capaz de erguer alegrias com as crianças e de acordar a infância na gente. “Folia Crianceira” é um baile-espetáculo (sim, com fantasia e tudo rsrs) que convida todo
mundo a ser pipoca*, a pular a partir do calor humano e a respostar somaticamente à música com movimentos próprios, pessoais e intransferíveis. Quiçá, quem participar de nosso baile, possa durar e sair dele em estado de traquinagem, com o riso em riste. Saudações brincantes!
* Termo utilizado no carnaval baiano para se referir a quem brinca o carnaval atrás dos trios elétricos sem estar cercado por cordas, como acontece nos blocos.
CANASTRA REAL
Folia Crianceira, o baile do cancioneiro brincante pra pipocar
José Rêgo (Pinduka) | violão e voz
Luciene Souza | voz
Berta Pitanga | flauta transversal e backing vocal
Josi Freitas | percussão
Nanda Leturiondo | produção, cenografia e figurinos
Classificação indicativa: Livre