Ecoh

“O contador deve assumir essa postura de um assessor de memória como um ofício fundamental justamente para que a sociedade seja mais harmoniosa, educativa, justa, igualitária e democrática.” Gislayne Matos

Entrevista por Christina Mattos | Foto enviada pela artista

Na França, onde morou de 1989 a 1992 para estudar arte terapia,  Gislayne Matos  ficou impactada ao assistir um festival internacional de contadores de histórias e trabalhar numa associação que, entre outras expressões artísticas, oferecia contação de histórias. O foco de sua pesquisa na época foi o conto como objeto mediador de processos terapêuticos.

Quando voltou ao Brasil em 1993, criou os projetos Convivendo com Arte e Noite de Contos, junto com a psicóloga Cecília Andrés Caram, em Belo Horizonte. Hoje ela pode se orgulhar de ter difundido a arte por aqui e contribuído para a formação de muitos narradores profissionais.

O Convivendo com Arte formou mais de 10.000 contadores de histórias.

Noite de Contos, idealizado para divulgar contos de tradição oral das mais diversas culturas, com apresentações mensais em teatros da capital mineira e outras cidades, se manteve ativo de 1994 e 2002.

Diversos grupos foram formados a partir do projeto e seguem atuando. Entre eles, Grupo Conto Encontro, Passaredo Contadores de Histórias, Tecendo Redes, Grupo Pirlimpimpim, Grupo Encontro na Praça, Grupo Vai e Vem Contando.

Na entrevista ela fala sobre a necessidade de se resgatar valores reavivando o sentido original das palavras e sobre a importância do contar histórias como um ofício essencial para a humanidade.

Os dois temas foram escolhidos como foco da oficina no 11º ECOH, As palavras como sementes… ou A criação e a destruição do mundo (23 de agosto,19h). 

– O ofício de contador e a sacralidade da palavra, como é que você vem enxergando essas duas questões?

Gislayne Matos – Essas duas coisas têm estado no centro dos meus interesses atualmente. Contar histórias é um ofício, além de ser uma arte. Tem a sua poética própria, como qualquer expressão artística, mas é um ofício muito importante, muito útil, de transmissor de memória. 

A memória também está nos livros, mas a forma como as informações são passadas pela oralidade tem um outro significado, outra forma de chegar no receptor é diferente, pelo ouvido, pelos olhos. São dois sentidos muito diferentes e que produzem efeitos diferentes no nosso cérebro. É um modo, de construção do pensamento de forma diversa. Ambos (livros e oralidade) são necessários. Mas se abdicarmos desta forma de transmissão pela oralidade, vamos perder muitas coisas da produção humana.

É ofício no sentido de ser algo útil à sociedade. O contador hoje encarna esse questão do ofício como algo útil. Ele reativa a memória de contos que são milenares. Cinderela, por exemplo, é contada há 4000 anos, desde o Egito. São coisas passadas através dos tempos, de pontos aclimatados nas mais diversas culturas. Um conteúdo arquetípico que fala para a alma humana, que precisa ser transmitido.

Então quero centrar um pouco nessa questão da importância do ofício e, sobretudo, a importância nesse momento que estamos vivendo, com excesso de informações veiculadas através de mídias, de redes sociais e tudo mais. Já temos muitas pesquisas que mostram o que isso produz no cérebro humano. Diante de uma tela, eu sou um ouvinte passivo, eu não interajo, eu não troco energia viva. Não é como acontece com o contador que tem uma troca com os ouvintes dele. 

A contação de histórias é uma arte diferente de outras artes da linguagem. Não é como o teatro, não é um monólogo. O contador constrói o seu texto à medida em que está contando para uma plateia “X”. 

Ele sabe a história que está contando, é fiel à estrutura da história, mas dependendo do público a forma de contar muda. Pode ser mais curta, mais intimista, mais engraçada ou filosófica… 

Isso faz parte da justamente da poética na arte de contar história. Uma poética que serve a um ofício, antes de ser arte.  E essa poética é importante porque serve a um ofício antes de ser arte. Um ofício fundamental que usa a diversão, o entretenimento, a arte para transmitir determinados valores que vêm de muito longe, que a gente pode chamar de valores absolutos, no sentido de que eles estão na base da construção e da manutenção da sociedade humana. São valores dos tempos míticos, da nossa origem, são eles que fizeram a sociedade humana sobreviver. 

É a questão da fraternidade, da solidariedade, da cooperação…Se isso não estivesse na base da sociedade humana, não teríamos sobrevivido. Precisamos lembrar desses valores e de outros também, que tem a ver com honra, justiça, com o que faz uma sociedade harmoniosa e justa. Então, são duas coisas importantes que precisamos abordar. 

O contador deve assumir essa postura de um assessor de memória como um ofício fundamental justamente para que a sociedade seja mais harmoniosa, educativa, justa, igualitária e democrática. 

O outro tema que vou abordar é a trajetória da palavra. A história da própria palavra que, num primeiro momento, era considerada sagrada, porque vinha do criador, dos mitos da criação. Uma palavra que constrói mundos. Nós vemos isso em vários mitos, em vários livros, mas essa palavra sagrada, à medida em que o tempo vai passando, vai perdendo a sacralidade, até chegar ao momento em que vivemos hoje quando é totalmente tirada desse contexto do sagrado. 

Passa a ser uma palavra profana no sentido de que não tem mais a transcendência que teve. Nos tempos mais antigos, quando se falava, por exemplo, lealdade, isso tinha um peso, tinha um significado.

Tem palavras que hoje perderam completamente o sentido original. Como, por exemplo, generosidade, uma palavra que tinha a ver com uma técnica antiga de aprendizagem do desapego. Uma técnica de elevação do próprio ser. A generosidade não era algo que você praticava para beneficiar o outro, era um exercício em benefício de si mesmo para perceber o que você estava fazendo nesse mundo, o seu tamanho nesse mundo e que as coisas são transitórias. O beneficiado era quem dava e não quem recebia. Quem recebia nem sabia de quem tinha ganho, essa era a proposta. Depois generosidade vai virar caridade no contexto católico, depois auto importância, ostentação.  Então quem tem vai virar uma pessoa bondosa, a mais considerada pela sociedade.

Esse é só um exemplo de como as palavras foram perdendo o seu sentido original e chegam ao nosso tempo completamente esvaziadas. Há que se fazer uma busca arqueológica do sentido das palavras. O contador pode trazer essas palavras de volta, dar o peso que elas têm, trabalhando com a constelação de palavras que estão a volta dela. 

– Você já tem mais de 30 anos de carreira, como você vê essa trajetória? 

Gislayne Matos – Quando eu voltei para BH, eu comecei, junto com uma psicóloga que fez formação de terapia de família junto comigo, o projeto Convivendo com Arte que era um ateliê de artes, uma ideia que eu tinha trazido da França. Um dos ateliês que a gente tinha no nosso espaço era o de contar histórias. Isso era muito novo em Belo Horizonte, até então só havia um trabalho tímido na biblioteca pública e muito focado em criança. Na realidade, eu estava chegando de um lugar, a França, onde os adultos lotavam os teatros à noite para ouvir histórias de todo tipo, de todos os países. Foi isso que eu trouxe para BH. 

Então a gente começou a trabalhar com o ateliê de formação de contador de histórias e, ao mesmo tempo, com o projeto de apresentar histórias no Palácio das Artes num pequeno teatro, uma vez por mês. Ficamos 7 anos em cartaz, sendo um sucesso total. Só no mês de janeiro a gente não contava histórias por causa das férias. Virou o programa cult da cidade na época, era uma novidade tão grande a partir da coisa mais antiga que tem na história da humanidade.

Foi então que formei muitos profissionais e comecei a ser chamada para festivais de Minas e de outros estados. Fiz um trabalho no Congresso Brasileiro de Terapeutas de Família e então me levaram para Curitiba, onde eu dei formação para terapeutas. Conheci o pessoal de Londrina também, trabalhei aí com terapia de família. Tenho uma ligação antiga e duradoura com o Paraná.

Depois eu escrevi um primeiro livro, A Palavra do Contador de Histórias, baseado numa pesquisa que fiz na UFMG. E junto com uma amiga, a também narradora Inno Sorsy, escrevi O Ofício do Contador de Histórias

E assim o meu trabalho foi ficando conhecido e se espalhou pelo Brasil todo. Mas eu acho que isso tudo aconteceu porque eu fiz esse movimento de trazer a contação de histórias e a formação do contador aqui em BH quando ainda não existia isso. 

– O que você diria para alguém que está começando a carreira como contador de histórias?

Gislayne Matos – Outro dia um rapaz me ligou para perguntar isso. Ele queria saber como é que poderia sobreviver disso. Eu disse a ele: primeiro tenha um trabalho. (Risos). Porque por um tempo você vai sobreviver desse outro trabalho que você tiver.  No Brasil é dificílimo viver de qualquer tipo de arte.

E mais, hoje tem contador saindo pelo ladrão, em todo lugar está cheio de contadores. Há uma grande disputa pelo mercado de ouvintes. Na verdade, o próprio mercado (apesar de eu não gostar dessa palavra), faz a triagem. Quem ouve é que diz esse eu gosto, esse eu não gosto. É o ouvinte que legitima. 

Eu lembro que quando comecei oferecia oficina de graça, testava com meus amigos, aí cada um trazia mais alguém e foi assim de começou. 

É investir pra ser conhecido e estudar bastante. Eu estudo diariamente.